Lideranças partidárias da Câmara driblam STF e aprovam R$ 596 milhões em emendas sem autoria
Lideranças partidárias da Câmara dos Deputados aprovaram, em 2025, cerca de R$ 596 milhões em emendas de comissão sem identificar nominalmente seus autores. A prática contraria determinação do Supremo Tribunal Federal (STF), que exige a identificação individual do parlamentar responsável por cada indicação, e reabre uma brecha de falta de transparência no uso do dinheiro público ao concentrar o controle dessas verbas nas cúpulas partidárias.
Levantamento do Estadão identificou 575 indicações feitas neste ano sem autoria nominal, concentradas especialmente nas Comissões de Saúde, Desenvolvimento Urbano e Turismo. Juntas, essas três comissões aprovaram R$ 596,3 milhões usando apenas o rótulo genérico de “liderança partidária”.
Procurada, a Câmara dos Deputados não se manifestou. O espaço segue aberto.

Para especialistas e técnicos ouvidos pelo Estadão, a concentração das indicações nas mãos das lideranças reduz a transparência e descaracteriza a natureza das emendas de comissão, criadas para apoiar políticas públicas de alcance nacional, como saúde, educação, cultura e meio ambiente. O mecanismo, avaliam, passou a atender interesses individuais de parlamentares, esvaziando o caráter coletivo dessa modalidade.
Entre as comissões, a área da Saúde foi a que mais se valeu desse mecanismo, com 364 indicações sem autoria nominal, que somam R$ 410.985.486 em emendas apresentadas por lideranças de PP, União Brasil, PL, Republicanos, Avante, Podemos e Solidariedade. Em seguida aparece a Comissão de Turismo, com 184 indicações que totalizam R$ 146.177.908, e a Comissão de Desenvolvimento Urbano, responsável por R$ 39.182.398 em repasses.
Para o pesquisador Humberto Nunes Alencar, do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP), a indicação das emendas de comissão por lideranças partidárias desvirtua a lógica original dessa modalidade, criada para refletir prioridades coletivas das comissões temáticas, não interesses individuais.
Na prática, afirma, os líderes passaram a controlar a porta de entrada das emendas, definindo quem recebe os recursos e em que volume, o que transforma esse instrumento em moeda de troca política e mecanismo de fidelização dentro das bancadas.
Ele cita como exemplo partidos de grande porte, que têm mais de 100 deputados, mas centralizam todas as indicações de comissão na figura de um único líder, permitindo que pedidos individuais de parlamentares da sigla sejam “carimbados” como se fossem escolhas da liderança.
“No fundo, é o líder quem decide, e isso transforma uma ferramenta coletiva em algo controlado por poucos parlamentares”, afirma.
Esse uso político se intensificou nos últimos anos. Como mostrou o Estadão, as emendas de comissão, que não são de pagamento obrigatório, passaram a servir para acomodar aliados por meio de repasses pulverizados em milhares de municípios.
O problema chegou ao Supremo especialmente depois que essa modalidade de emenda foi turbinada com recursos antes destinados ao orçamento secreto, prática revelada pelo Estadão e considerada inconstitucional pelo STF em 2022. No fim de 2024, o ministro Flávio Dino determinou o bloqueio das emendas de comissão e a adoção de regras de transparência, entre elas a obrigatoriedade da identificação nominal dos parlamentares responsáveis por cada indicação.
Nas decisões mais recentes, Dino reforçou que a indicação de uma emenda pode ser apresentada por uma liderança partidária, mas essa formalidade não dispensa a Câmara de identificar quem é o parlamentar responsável por cada repasse.
O ministro afirmou que o Congresso deve registrar, de forma individualizada, o nome do deputado que negociou e solicitou o envio da verba, e não apenas o da liderança que protocolou a indicação. Para Dino, a transparência nominal é um requisito de validade do gasto público e faz parte do núcleo da decisão que proibiu o orçamento secreto.
Técnicos do Orçamento concordam com essa leitura. Embora o Supremo reconheça que líderes podem apresentar formalmente sugestões às comissões, eles afirmam que isso não substitui a identificação nominal do parlamentar que pediu a emenda, que deve aparecer de forma individualizada mesmo quando houver intermediação das lideranças. A autoria genérica atribuída à “liderança partidária”, avaliam, fere a exigência de rastreabilidade imposta pela Corte.
Na prática, porém, o cenário pouco mudou. A deputada Adriana Ventura (Novo-SP), integrante da Comissão de Saúde, afirma que as exigências definidas pelo STF seguem sendo descumpridas. “Tem umas quatro ou cinco comissões que têm muito dinheiro; outras, não. As comissões que têm dinheiro, como tudo é movido a emenda, estão diretamente vinculadas ao apoio que é dado ou não. Na verdade, continua tudo como antes: não há critério. O critério é político, baseado em apoio e trocas. Não melhorou nada. A obrigação objetiva agora é fingir que dão transparência, mas não dão”, diz.
O diagnóstico é compartilhado pelo pesquisador Bruno Bondarovsky, da PUC-Rio e responsável pela plataforma Central das Emendas. Para ele, o uso das lideranças como autoras formais cria camadas adicionais de ocultação no processo. “Isso dificulta a fiscalização e impede a identificação do parlamentar responsável pela destinação do recurso”, diz.
Bondarovsky destaca que o mecanismo permite que pedidos individuais sejam registrados como decisões da liderança, fazendo com que verbas cheguem a municípios sem vínculo com o Estado do líder indicado como autor, prática revelada pelo Estadão.
“Isso esvazia o sentido original de resolver problemas nacionais e regionais relacionados ao tema da comissão”, diz.
