Namoro qualificado e união estável: a linha tênue entre o afeto e a constituição de família
A evolução das relações afetivas na sociedade contemporânea tem imposto importantes desafios ao Direito de Família. Relacionamentos mais maduros, livres de formalidades e frequentemente marcados por convivência íntima, viagens, eventos sociais e até coabitação podem levar à falsa impressão de que há, ali, uma união estável. Entretanto, essa conclusão nem sempre corresponde à realidade jurídica.
É comum que namoros prolongados apresentem sinais externos muito semelhantes aos de uma entidade familiar. Pessoas adultas, muitas vezes já tendo vivenciado uniões anteriores e possuidoras de filhos, constroem vínculos afetivos profundos, convivem com intensa proximidade e mostram ao círculo social a existência de um relacionamento sólido. Apesar disso, falta muitas vezes o elemento que transforma esse vínculo em união estável: o propósito de constituir família.
O elemento subjetivo da união estável
A união estável, reconhecida pela Constituição como entidade familiar, exige mais do que convivência pública, contínua e duradoura. Pressupõe o chamado affectio maritalis, ou seja, a intenção verdadeira de estabelecer uma comunhão de vida. Esse é o componente subjetivo que distingue a união estável do chamado “namoro qualificado”.
Ainda que o namoro seja sério, exclusivo e prolongado, não há união estável quando o casal não possui o desejo atual de formar uma família. Nessas situações, o relacionamento permanece na esfera meramente afetiva e não gera consequências jurídicas típicas das entidades familiares. Não há regime de bens, alimentos, meação, direitos sucessórios ou dever de assistência material. Esses efeitos somente surgem quando há vontade manifesta e comprovada de constituir uma vida em comum.
A posição do Superior Tribunal de Justiça
O Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do REsp 1.454.643/RJ (Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, j. 03/03/2015), destacou que a diferença essencial entre o namoro qualificado e a união estável está na abrangência da convivência. Segundo o tribunal, a união estável pressupõe o efetivo compartilhamento de vidas, com apoio moral e material irrestrito. Somente nesses casos se pode considerar a família constituída.
No namoro, mesmo quando existam planos ou expectativas de futuro, esse elemento não é suficiente para configurar uma união estável. A convivência pode ser intensa e duradoura, mas, se não houver intenção atual de formação de entidade familiar, o relacionamento permanece juridicamente como namoro.
A análise do caso concreto e o papel do advogado
A distinção entre namoro e união estável depende sempre da análise do caso concreto. Cabe aos advogados examinar com cuidado os elementos fáticos que revelam ou afastam o propósito de constituir família. Testemunhos, documentos, correspondências e registros que indiquem participação conjunta na aquisição de bens podem demonstrar que o casal efetivamente vivia como família, e não apenas como namorados.
A prova deve refletir a realidade da convivência. A dependência econômica, a divisão habitual de despesas, a inclusão do parceiro como dependente em planos de saúde ou previdência privada e a existência de planejamento patrimonial comum são alguns dos indícios que podem apontar para a existência de união estável. Da mesma forma, a ausência desses elementos costuma reforçar a conclusão de que o vínculo era apenas amoroso.
Considerações finais
A diferenciação entre namoro qualificado e união estável não é apenas uma discussão teórica. Ela produz efeitos diretos em temas sensíveis como partilha de bens, direitos sucessórios e obrigações alimentares. Por isso, é fundamental que a caracterização da união estável seja feita com cautela, com base em provas concretas e no verdadeiro desejo do casal.
A sociedade atual apresenta múltiplas formas de relacionamento, e o Direito precisa acompanhar essa realidade sem perder de vista a segurança jurídica. Apenas quando houver clara e comprovada intenção de constituir família é que se pode reconhecer a união estável e atribuir-lhe seus efeitos. O namoro, por mais sério e duradouro que seja, não basta por si só para formar uma entidade familiar.
