Heranças no exterior: ITCMD segue sem cobrança mesmo após mudança constitucional
Apesar de a promulgação da Emenda Constitucional nº 132/2023 não ser mais tão recente, a cobrança do Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação (ITCMD) em heranças e doações envolvendo bens localizados no exterior ainda gera debates.
No entanto, decisões recentes do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) têm afastado a exigência do imposto sobre doações e heranças com conexão internacional, concluindo que não há norma válida em vigor que autorize a cobrança – seja lei complementar federal ou lei estadual.
A despeito da posição firme da Procuradoria e conservadora por parte de alguns juristas, os Tribunais continuam a aplicar o entendimento firmado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no Tema 825 de repercussão geral.
Em 2021, no Recurso Extraordinário nº 851.108, de acordo com o qual os estados e o Distrito Federal não podem instituir ITCMD quando o doador tiver domicílio ou residência no exterior, ou o falecido (de cujus) possuía bens, residência ou teve inventário processado fora do país, sem a prévia edição de uma lei complementar federal que regule a matéria.
Essa exigência decorre do artigo 155, §1º, inciso III, da Constituição Federal, e até o momento, ao menos no Estado de São Paulo nenhuma lei complementar nacional foi editada para disciplinar esses casos. Em outras palavras, permanece uma lacuna legislativa: sem a lei federal, a competência estadual para tributar transmissões internacionais não se concretiza.
A Emenda Constitucional nº 132/2023 buscou alterar esse cenário ao incluir um regime transitório no texto constitucional (artigo 16 da EC 132). Assim, o ITCMD ficou provisoriamente sob a competência dos estados, seguindo critérios de conexão previstos na própria emenda: se o doador tiver domicílio ou residência no exterior, competirá ao Estado onde tiver domicílio o donatário ou ao Distrito Federal, por exemplo.
Após tal mudança abriu-se discussão sobre se a cobrança poderia ser retomada de imediato. Entretanto, a jurisprudência aponta que a emenda não convalidou automaticamente as leis estaduais antes declaradas inconstitucionais (efeito repristinatório).
No caso de São Paulo, a alínea b do inciso II do art. 4º da Lei estadual 10.705/2000 (que previa a incidência do ITCMD sobre bens de pessoa falecida no exterior) já havia sido declarada incidentalmente inconstitucional pelo Órgão Especial do TJ-SP, em 2011 (posteriormente, pelo próprio STF, em 2021, através do Tema 825).
Conforme entendimento pacífico no STF, o ordenamento brasileiro não admite a chamada “constitucionalidade superveniente”, de forma que uma emenda constitucional não pode tornar válida uma norma que já declarada inconstitucional.
Em outras palavras, a EC 132/2023 não torna válida por si só a antiga previsão da lei paulista que já estava expurgada do ordenamento. Portanto, seria necessária a edição de uma nova legislação estadual específica para regular a cobrança do ITCMD nesses casos. Enquanto essa nova lei não for editada, não há base legal para exigir o imposto sobre bens localizados no exterior, permanecendo a proibição à cobrança originalmente fixada pelo STF.
A resposta dos tribunais paulistas após a emenda tem confirmado essa interpretação. Em outubro de 2025, o TJ-SP julgou os Embargos de Declaração nº 1075788-09.2021.8.26.0053, consolidando a posição de que o ITCMD continua inexigível na falta de lei complementar federal e estadual.
Nesse acórdão, de relatoria do Desembargador Kleber Leyser de Aquino, a Corte reconheceu expressamente “a inexigibilidade do ITCMD” sobre bens herdados do exterior e reiterou que a lei paulista 10.705/2000, por ser ordinária e ter tido seu dispositivo declarado inconstitucional, não pode voltar a viger apenas com base na EC 132, já que “o nosso ordenamento jurídico não comporta a chamada constitucionalidade superveniente”.
Diversos outros julgados do TJ-SP em 2024 seguiram na mesma linha. Em um caso recente relatado pelo Des. Ricardo Dip (11ª Câmara de Direito Público), que envolvia doação de um contribuinte do Reino Unido para um donatário em São Paulo, o tribunal afastou a cobrança e manteve a sentença favorável ao contribuinte, enfatizando que a Emenda 132/23 entrou em vigor após a declaração de inconstitucionalidade da lei paulista e, portanto, não há norma estadual vigente que ampare a pretensão fiscal.
Esse entendimento favorável aos contribuintes vem prevalecendo nas Câmaras de Direito Público do TJ-SP, com diversas decisões publicadas em 2024 reconhecendo a não incidência do ITCMD em casos com elemento de conexão estrangeiro – a título de exemplo, os acórdãos nas Apelações nº 1027481-19.2024.8.26.0053, nº 1028192-24.2024.8.26.0053 e nº 1075766-77.2023.8.26.0053, em que foi reconhecida a inexigibilidade do imposto diante da ausência de legislação autorizativa.
Por enquanto, registra-se apenas uma decisão isolada em sentido contrário: a 1ª Câmara de Direito Público, no julgamento da Apelação nº 1016961-97.2024.8.26.0053, entendeu – em voto vencido– que a EC 132/23 teria suprido a necessidade de lei complementar e permitido a cobrança imediata do ITCMD nesses casos. Essa posição minoritária, contudo, não vem sendo seguida pelas demais câmaras e tem sido alvo de críticas de tributaristas, que a consideram equivocada diante do posicionamento consolidado no STF.
No horizonte legislativo, há medidas em curso que podem redefinir essa questão, mas que ainda não surtiram efeito. Tramitam atualmente na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo dois projetos de lei relativos ao ITCMD. O primeiro deles, o PL 7/2024, apresentado logo após a emenda, propõe uma reformulação da Lei 10.705/2000 – inclusive instituindo alíquotas progressivas de até 8% em vez da alíquota fixa de 4% – e busca adequar a legislação paulista às novas disposições constitucionais.
O segundo é o PL 199/2025, focado especificamente em regulamentar a cobrança do ITCMD nas hipóteses com elementos de conexão no exterior, preenchendo a lacuna deixada pela declaração de inconstitucionalidade dos dispositivos anteriores da lei estadual. Se aprovados e sancionados, esses projetos poderão alterar o cenário já em 2025, fornecendo uma base jurídica para que o Estado volte a tributar heranças e doações internacionais conforme os critérios da EC 132.
Por ora, contudo, nenhum deles foi aprovado e convertido em lei, de forma que, neste momento, não há fundamentação legal válida para a cobrança do ITCMD sobre bens localizados no exterior, mantendo-se a “lacuna tributária” reconhecida pelo STF.
