‘Bons Tempos’
Bons Tempos: esse o título do livro de Maurício Vidigal, magistrado que deixou nome de respeito e prestígio na Justiça bandeirante, chegando a exercer a Corregedoria Geral da Justiça.
O prefácio de Tércio Sampaio Ferraz Júnior sintetiza o valor da obra: “Bons tempos marca uma estreia e um apogeu”. O jurista é também contista: “Da pena do juiz nasce a reflexão, como um espírito que presta contas a si mesmo”.
Ninguém exerce a Magistratura sem se impregnar dos dramas que ela entrega, sem trégua, àqueles que permanecem por décadas na carreira.
O primeiro dos contos, de um sequestro a final solucionado pela decidida e severa esposa de um dos sequestradores, enfatiza um sentimento acalentado por boa parte da população, ao estranhar a rápida mudança dos costumes e dos valores.
“Antigas emoções” resgata paixões da adolescência, conservadas em blindagens afetivas e evidenciam como elas são distintamente sentidas pelos personagens, mesmo após décadas de separação. O conto “Fatos, fantasmas e fantasias” aborda um tema que todo juiz sensível enfrenta com certo desconforto. O estranho visitante critica a mania de “enjaular” seres humanos, afirmando que “há muito não utilizamos essa punição, temos métodos mais eficientes para controle dos indisciplinados”. E confessa não ter vindo à Terra para civilizar os terrestres – ou terráqueos…
Realmente, não aprendemos. Continuamos a encarcerar, como se o trancamento de pessoas as convertesse para a volta sadia ao convívio.
A visita do demônio em “Juramentos” foi real ou imaginação da menina carente do carinho paterno? Se o conto da ficção foi recusado pela revista a que destinado, o de Maurício cumpre sua função de mostrar como é que o “cão” se aproxima de seus pretensos alvos. A maior esperteza do diabo é convencer os humanos de que ele não existe. Assim, pode atuar com desenvoltura maior.
“O Juiz e o computador” discorre, com estilo e elegância, sobre o trauma da Magistratura austera e conservadora, à chegada do mundo digital. O experiente servidor, designado como “um velho e fiel oficial de Justiça, tido como decrépito pelos pretensiosos jovens manipuladores da máquina”, tinha razão ao repetir as palavras do juiz: “o computador facilitava o trabalho, mas igualava casos diferentes, aplicando decisões semelhantes a hipóteses diversas. Transformava pequenas bobagens em enganos monstruosos”. Será que o advento da IA – Inteligência Artificial, aturdirá ainda mais os analógicos que persistem a tatear diante da eletrônica, da informática, da robótica, da nanotecnologia, impressão 3D e metaverso?
Deliciosa a narrativa “Cuidado que o Limam vem aí”. A descrição dos personagens do foro é minuciosa e adequada. Quem já não se deparou com a jurisdicionada Sebastiana de Jesus, com o Doutor Cícero, com o jovem estudante de direito Hamilton?
Juízes como Dr. Marcello Octavio existem muitos. Representam o resultado de um concurso de seleção que não consegue aferir as chamadas “competências socioemocionais”. Prioriza a memorização. Tanto que os exitosos “Cursinhos” são os reais recrutadores dos quadros de todas as carreiras jurídicas estatais. Os certames oficiais são previsíveis, realizados por uma Comissão ad-hoc, sem qualquer preocupação com aspectos como vocação, equilíbrio, empatia, capacidade de comunicação, comiseração ou compaixão pelo próximo. D. Sebastiana de Jesus tinha todo o direito e razão ao indagar se Liebman, Pontes de Miranda e Humberto Theodoro Júnior conheciam o marido de quem tentava arrancar alimentos para os filhos.
A perplexidade da mulher reproduz o arcaísmo e a burocracia ainda imperantes em nosso sistema Justiça. Hoje envolto em formalismos, procedimentalismos e preclusões, bem pouco preocupado com a concretização do justo substancial. Um bom ensaio sobre o consumismo está em “O vendedor de nada”. Sobra para a indigência da maior parte da política partidária tupiniquim: “Políticos sempre entregam aos seus ‘clientes’ muito menos do que prometeram e nem por isso são chamados de imorais por quem os estuda a sério; somente o ignorante os condena totalmente”. “O cantor da liberdade” pode ser sutil recado a quem se envaidece quando os áulicos o rodeiam enquanto ostenta uma partícula que seja de poder.
Mais um testemunho da sensibilidade de Maurício no relato “O processo de Japão”. Não é fácil explicar a jejunos, moídos e esfarelados na burocracia jurisdicional, como é que funciona o sistema “Justiça” no Brasil. Enfim, cada narrativa de Maurício Vidigal, além de persuasiva e de agradável leitura, pode servir de material de reflexão para cada integrante deste nosso universo que se atém ao superficial e se olvida do essencial: Justiça é equipamento estatal dispendioso, cada vez mais dispendioso, que deve existir para solucionar problemas. Não para afligir ainda mais o aflito, como não raro ocorre.
