Revisão da Vida Toda: entre a segurança jurídica e a confiança de quem acreditou na Justiça
Quando o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu, em 2022, o direito dos segurados de incluir todas as contribuições feitas ao longo da vida no cálculo das suas reformas, senti que a Justiça estava finalmente a valorizar a trajetória de quem sempre contribuiu para o sistema. Como advogada previdenciarista, acompanhei de perto a esperança reacendida em muitos trabalhadores, que viram naquela decisão um gesto de respeito à sua história contributiva.
Essa decisão, conhecida como “Revisão da Vida Toda”, foi um marco. Ela dava ao segurado a possibilidade de optar pela forma de cálculo mais vantajosa, incluindo contribuições anteriores a julho de 1994, que antes eram simplesmente desconsideradas. Era uma forma de corrigir distorções e tornar o sistema mais justo. Não se tratava de privilégio, mas de equidade.
Contudo, recentemente, fomos surpreendidos por uma guinada no entendimento do STF, que ao julgar as Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs 2.110 e 2.111), decidiu que a regra de transição da Lei 9.876/99 deve ser aplicada de forma obrigatória. Isso significa que os segurados não podem mais escolher a regra mais favorável, anulando, na prática, a tese da Revisão da Vida Toda.
Essa mudança repentina criou um clima de incerteza e frustração. Milhares de pessoas que, confiando em uma decisão anterior da mais alta Corte do país, recorreram à Justiça com esperança de verem reconhecido um direito. Muitos desses processos estavam em andamento ou já tinham decisões favoráveis. Como explicar agora a esses cidadãos que tudo mudou de forma tão abrupta?
Não estamos apenas a falar de valores financeiros. Estamos a falar de previsibilidade e estabilidade jurídica, sem as quais o cidadão perde a referência e o próprio sistema perde credibilidade. Quando uma decisão como essa é revista de forma brusca, sem um período de transição ou um critério de modulação, o que se quebra é a confiança de quem agiu acreditando na Justiça.
Neste contexto, o instituto da modulação de efeitos, previsto no artigo 27 da Lei 9.868/99, ganha um papel fundamental. Ele permite que o STF defina a partir de quando sua nova interpretação deve valer, justamente para evitar injustiças. É o que se espera agora: que o Tribunal reconheça que não se pode penalizar quem agiu corretamente, com base em um entendimento que era oficial.
Dois pontos são essenciais: primeiro, que os valores já pagos a segurados com base em decisões anteriores não sejam devolvidos. Esses pagamentos foram feitos com base em decisões judiciais ou administrativas válidas. Seria inaceitável impor a essas pessoas a devolução de quantias recebidas de forma legítima. Segundo, que os processos em curso, iniciados sob a vigência do entendimento anterior, continuem a ser julgados com base naquela interpretação.
A nós, advogados, cabe agora um papel ainda mais importante: proteger os direitos dos nossos clientes e defender a estabilidade do sistema jurídico. Precisamos peticionar com firmeza, mostrando que os processos foram iniciados dentro da legalidade e que não é justo aplicar retroativamente uma nova interpretação.
Nos casos já encerrados, é fundamental invocar a coisa julgada, protegendo os beneficiários contra tentativas de reabrir causas decididas. E em todos os casos, devemos reforçar o valor da confiança, da coerência e do respeito à trajetória de cada trabalhador que acreditou na Justiça.
A Revisão da Vida Toda é mais do que uma tese jurídica. Ela representa a luta por um sistema previdenciário mais justo e humano. E, mesmo com a mudança de rumo, continuo a acreditar que o Direito não é feito apenas de leis frias, mas também de princípios que nos lembram da dignidade de cada pessoa.
