Exclusivo: Relatório da CVM indica descontrole da Reag para prevenir a lavagem de dinheiro
A gestora de fundos Reag Investimentos tem “sérios problemas de controles internos e de governança”, de acordo com relatório de fiscalização feito pela Comissão de Valor Mobiliários (CVM). O documento diz textualmente que a empresa “mantém continuidade de vínculos com clientes sobre os quais já não tem mais pleno conhecimento da origem dos seus recursos e da constituição de seu patrimônio”.

Essa “incapacidade de manter controles robustos” – diz o relatório – “é o reflexo de uma cultura de negligência que compromete a integridade do mercado de valores mobiliários e a confiabilidade de sua operação”. O documento ao qual o Estadão teve acesso prossegue afirmando que a Reag opera em um cenário de alta vulnerabilidade e comprometimento de sua capacidade de mitigar riscos relacionados à LD/FTP (lavagem de dinheiro e financiamento do terrorismo e proliferação de armas de destruição em massa)“.
“A situação se apresenta mais grave, em vista do grande porte da instituição, que opera volume significativo de recursos e grande quantidade de fundos” E conclui: “a administradora não dispõe de sistemas confiáveis, tampouco de procedimentos para identificar operações atípicas de forma a avaliar a necessidade de comunicação ao Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras)”.
Ao Estadão, a Reag afirmou que as “supostas desconformidades identificadas em documentos de políticas e manuais de PLD/FTP não indicam ausência ou insuficiência dos controles e procedimentos adotados pela companhia”. De acordo com a empresa, “tais controles existem, são efetivamente aplicados e passam por aprimoramentos contínuos, em linha com as melhores práticas regulatórias”.
“A companhia reforça seu compromisso permanente com a transparência, a governança e o cumprimento integral das normas aplicáveis, mantendo-se à disposição das autoridades para prestar todos os esclarecimentos necessários.” Segundo a Reag, não existe” neste momento”, qualquer acusação formulada pela CVM.

A Reag informou ainda que, agora, a empresa e os diretores apresentarão seus esclarecimentos dentro do processo regulatório. A empresa, por fim, também procurou negar relação entre as conclusões do relatório da Superintendência de Supervisão de Investidores Institucionais (SIN) e as acusações investigadas pela Operação Carbono Oculto, quando a Reag foi alvo de busca e apreensão.
Total de irregularidades
O documento 01/2025, produzido pelo Setor de Fiscalização de Fundos de Investimento (Sefis), da Superintendência de Supervisão de Investidores Institucionais (SIN) da CVM é assinado pelos chefes da seção Marcelo Araújo da Silva, e da superintendência, Marco Antonio Velloso de Sousa, e pela inspetora Elessandra Corrêa.
Ao todo foram listadas 35 irregularidades graves cometidas pela empresa e pela sua alta administração entre 2020 e 2024 – 17 descumprimentos de normas pela Reag e 18 pela alta administração da gestora de fundos.
O documento especifica cinco diretores da empresa e suas supostas ações e omissões: Marco Antonio da Costa Baptista, Ramon Pessoa Dantas, Silvano Gersztel, Octávio Pires Vaz Filho e Fernando Dauj Torres. Como membros da alta administração da empresa no período, são citados outros quatro executivos: André Ricardo Caó Dias, João Carlos Falbo Mansur, Leonardo Falbo Donato, Leonardo de Souza Carvalho e Arthur Caixeta Nogueira.
Sobre eles, os técnicos da CVM dizem: “O presente relatório de inspeção traz suficientes evidências de autoria e materialidade em relação a vários descumprimentos normativos. Considerando a relevância dos achados aqui contidos e os descumprimentos sumarizados no tópico 6, propõe-se o envio de ofício às pessoas citadas para que se manifestem a respeito das desconformidades apontadas para avaliação de acusação no âmbito do processo administrativo sancionador.”
A reportagem solicitou à assessoria da Reag contato dos executivos, que foram citados nominalmente no relatório da CVM a fim que pudessem responder pelos fatos narrados no relatório da CVM mas a empresa disse que não tinha mais nada a comentar sobre o caso. O espaço segue aberto.

O documento da fiscalização foi registrado em 23 de setembro, quase um mês depois da deflagração da Operação Carbono Oculto, que investigou a captura de parte do setor de combustíveis do País pelo Primeiro Comando da Capital (PCC) e a suposta lavagem do dinheiro dos criminosos por meio de fundos de investimentos administrados por gigantes do mercado financeiro, como a Reag.
Ela e outra três administradoras de fundos com sede na Avenida Faria Lima, em São Paulo, foram alvo de buscas e apreensão decretadas pela Justiça e executadas pela Polícia Federal, Ministério Público e Receita Federal na maior operação da história até hoje feita contra a lavagem de dinheiro da facção.
Cassiopeia, o começo da investigação
A ação de fiscalização da CVM originou-se em um pedido feito pelo promotor Alexandre de Andrade Pereira, do Núcleo de Piracicaba do Grupo de Atuação Especial e Combate ao Crime Organizado (Gaeco), do Ministério Público de São Paulo. O Gaeco investigava então a suposta participação da Reag na lavagem de dinheiro de Mohamad Hussein Mourad, o Primo, proprietário da distribuidora de combustíveis Copape, acusado de ser um dos chefes da organização criminosa no setor de combustíveis, da qual participavam integrantes do PCC.
Mourad foi um dos principais alvos da Carbono Oculto. Ele está foragido desde 28 de agosto – os investigadores suspeitam que ele esteja no Líbano. Sua defesa alega que ele tem sido vítima de ilações e conjecturas infundadas sem nenhuma respaldo nas provas dos auto. E diz que até o momento não existe nenhum indício de “qualquer ligação com as atividades ilícitas do PCC”.
Foi a primeira denúncia contra Mohamad que deu origem à fiscalização da CVM na Reag Investimentos. A acusação foi apresentada em 2024 pelo Gaeco no âmbito da Operação Cassiopeia, que começou a investigar o uso de fundos de investimento para blindar o patrimônio do esquema que seria chefiado por Primo.

De acordo com a denúncia do promotor, ao assumir a direção da Copape em 2020, a empresa experimentou um crescimento vertiginoso de vendas, chegando a ficar atrás apenas da Petrobrás na formulação de gasolina A. Associada à distribuidora Aster, ela vendia gasolina C para os postos.
Foi analisando as contas da família de Mourad que o Gaeco chegou ao Location Fundo de Investimentos em Participações Multiestratégia, o FIP Location, usado para adquirir empresas detentoras dos controles da Copape e da Aster com o objetivo de ocultar seus verdadeiros donos: Primo e o empresário Roberto Augusto Leme da Silva, o Beto Loco. Sua defesa nega as acusações. A exemplo de Mohamad, ele está foragido desde 28 de agosto.
O FIP Location foi constituído em 25 de agosto de 2017 e foi administrado pela Reag até 28 de maio de 2024, quando renunciou à sua administração. O Ministério Público pediu que a CVM analisasse se a Reag cumprira as regras da resolução CVM nº 50/2021 durante o período em que esteve à frente do fundo FIP Location.
Descontrole dos clientes, caixa zerado e passivo de R$ 1 bi
Os técnicos da CVM fizeram então uma análise ano a ano das atividades da Reag relacionadas ao fundo. A fiscalização comparou ainda a ação da empresa com outros dois clientes e concluiu que os achados demonstravam que “as deficiências dos controles internos da Reag são contínuas”. “Diversos alertas do sistema sobre a incompatibilidade entre posições de investimento, renda e patrimônio ou não tiveram tratamento adequado ou sequer foram tratados.”

E chegaram a uma conclusão grave: “A Reag mantém continuidade de vínculos com clientes sobre os quais já não tem mais pleno conhecimento da origem dos seus recursos e da constituição de seu patrimônio”. Os achados, segundo os técnicos, corroboram a falta de efetividade da política de prevenção à lavagem de dinheiro da gestora e ao financiamento ao terrorismo.
Segundo o documento da CVM, a análise demonstrou a “desconexão fundamental entre o que é exigido pela regulamentação e a sua aplicação prática”. “Entende-se que a alta administração e o diretor de PLD descumprem o artigo 4º , inciso 1 da resolução CVM nº 50/2021, que exige uma política de governança detalhada e papéis bem definidos”.
Segundo eles, há ausência de relatórios de controles internos e ausência de análise interna de riscos, os quais eram muitas vezes meras cópias de relatórios de anos anteriores. Isso indicaria que a Reag “não apenas falhou em estabelecer, mas também em implementar controles internos eficazes”.
A suspeita do Gaeco de Piracicaba é que todo esse ambiente criava uma espécie de “cegueira deliberada” sobre a origem dos recursos transacionados pela organização criminosa. “A ausência de controles robustos materializou na situação denunciada na investigação do MPSP”, afirmaram os técnicos da CVM.

A conclusão final dos técnicos, para os promotores do Gaeco, robustece as suspeitas contra a empresa ao afirmar que o sistema de compliance da empresa seria mera formalidade. E cita como exemplo a evolução dos recursos do FIP Location.
“A perda de 100% do investimento (do FIP Location) não foi um evento súbito, mas uma falha contábil acumulada ao longo dos anos, configurando descumprimento contínuo direto e deliberado do dever fiduciário e das normas de diligência, fiscalização e mensuração”. A esse respeito, as responsabilidades recaem sobre a Reag”, afirmou a CVM.
O caixa zerado do fundo teria sido uma forma de ocultar o patrimônio da organização criminosa. “Em 2024, o parecer foi ressalvado em razão do reconhecimento da perda de 100% do investimento como ajuste de equivalência patrimonial da empresa investida que tinha passivo a descoberto de R$ 1,099 bilhão sem qualquer reconhecimento ou provisionamento nas demonstrações contábeis do fundo”
Perfil da empresa
Até a explosão da Carbono oculto, a Reag só ficava atrás das gestoras de ativos dos grandes bancos brasileiros. Até julho, ele era a maior casa independente do País, com R$ 341,5 bilhões sob gestão, segundo ranking da Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiro e de Capitais (Anbima).
Era a segunda maior gestora do mercado de Fundos de Investimento em Participações (FIP); tinha o terceiro maior patrimônio sob gestão em Fundo de Investimento em Direitos Creditórios (FIDCs) e a segunda maior participação nos fundos multimercados. A empresa teve de vender ativos após o escândalo e alterou seu nome para Arandu Investimentos.
Leia a íntegra da nota da Reag:
A companhia esclarece que não existe, neste momento, qualquer acusação formulada pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM). O documento recentemente recebido trata-se de um relatório preliminar, emitido apenas para que a empresa apresente seus esclarecimentos dentro do processo regulatório.
É igualmente importante destacar que:
1. Apesar de o atual Processo Administrativo ter se originado do PIC 66/24, a fiscalização realizada pela Superintendência de Relações com Investidores Institucionais (SIN) e as conclusões apresentadas não têm relação com os fatos apurados no PIC 66/24, nem com aqueles investigados no PIC 30/22.
2. As supostas desconformidades identificadas em documentos de políticas e manuais de PLD/FTP — em referência ao art. 4º, I, e ao art. 7º, §4º, da RCVM 50 — não indicam ausência ou insuficiência dos controles e procedimentos adotados pela companhia. Tais controles existem, são efetivamente aplicados e passam por aprimoramentos contínuos, em linha com as melhores práticas regulatórias.
A companhia reforça seu compromisso permanente com a transparência, a governança e o cumprimento integral das normas aplicáveis, mantendo-se à disposição das autoridades para prestar todos os esclarecimentos necessários.
