Nova CNH: menos burocracia, mais inclusão
Após meses de discussão, o Conselho Nacional de Trânsito (Contran) aprovou por unanimidade a Resolução 1.020/25, que redesenha o processo para obtenção da Carteira Nacional de Habilitação: acaba com a obrigatoriedade de aulas em autoescolas, cria curso teórico on-line gratuito, reduz para duas horas a carga mínima de aulas práticas e permite a atuação de instrutores autônomos credenciados. Os exames teórico e prático permanecem obrigatórios. A estimativa oficial é de redução de até 80% no custo total do processo, hoje oscilando entre R$ 3 mil e R$ 5 mil.
Desde a fase de consulta pública, a mudança tem se mostrado um passo importante para democratizar o acesso à habilitação. Os dados apontam nessa direção: cerca de 20 milhões de pessoas dirigem sem habilitação e outras dezenas de milhões têm idade para tirar a CNH, mas desistem diante de um custo que pode consumir quase 8% da renda anual média, percentual muito superior ao observado em países como França e Alemanha.
O próprio governo reforçou essa radiografia: hoje, 54% dos donos de moto não têm CNH, o que evidencia um sistema que colocou a população mais pobre à margem; entre jovens de 18 a 24 anos, 51% não possuem habilitação. Ao mesmo tempo, empresas de transporte de cargas relatam 44,6% de vagas em aberto para motoristas, e no transporte urbano de passageiros o índice supera 50%, mostrando que o gargalo da habilitação também trava emprego e renda.
A resolução não extinge a formação, apenas a adequa de acordo com a realidade existente, abandonando um modelo ultrapassado e engessado. O candidato poderá abrir o processo diretamente pelo site do Ministério dos Transportes, pelos Detrans ou pelo novo aplicativo CNH do Brasil (evolução da Carteira Digital de Trânsito). Terá acesso a curso teórico gratuito e digital, com recursos de acessibilidade (Libras, legendas e conteúdos visuais); e, para a prática, poderá optar entre um centro de formação tradicional ou um instrutor independente credenciado pelo Detran, rastreados, identificados e fiscalizados pelo poder público. Além disso, o candidato poderá utilizar o próprio veículo nas aulas práticas, desde que em condições de segurança, e terá direito ao primeiro reteste gratuito caso seja reprovado na prova.
Outro ponto relevante é o fim do prazo rígido para concluir o processo: deixa de existir o limite de 12 meses. Agora, o processo só se encerra com a emissão da Permissão para Dirigir ou da CNH definitiva, ou por desistência ou inaptidão permanente. O candidato pode avançar no seu próprio ritmo, evitando a perda de tudo que já pagou apenas porque não conseguiu concluir as etapas no tempo antigo.
O foco deixa de ser a quantidade de horas pagas e passa a ser o resultado nas provas. É o que já fazem países como Estados Unidos, Reino Unido e Canadá, além de Argentina e Japão, onde o Estado cobra que o candidato demonstre, no exame, que sabe dirigir com segurança, não que apresente uma coleção de certificados de etapas burocráticas.
Num país em que milhões dirigem sem CNH por falta de dinheiro, a manutenção de um sistema caro e ultrapassado é mais uma forma de empurrar pessoas para a clandestinidade. O sistema baseado no monopólio de autoescolas concentrou renda, criou distorções de preço e alimentou denúncias de “máfias de reprovação”. Ao tornar as aulas facultativas e abrir espaço para outros formatos regulados de formação, a resolução quebra esse cativeiro e devolve ao cidadão o direito de escolher a melhor forma de se preparar, a que melhor se adequa à sua realidade. A autoescola permanecerá como uma opção para aqueles que desejarem frequentá-la, mas deixa de ser a única porta de entrada.
Além das alterações para obtenção da CNH, também houve a edição da Medida Provisória do Bom Condutor, que cria um conjunto de incentivos para quem dirige observando à legislação: redução de 40% no valor dos exames médico e psicológico – com expectativa de preço final em torno de R$ 180 – e renovação automática da CNH para o “condutor ficha limpa”, aquele que passa 12 meses sem cometer infrações de trânsito.
As medidas focam na habilitação, mas em quem também já é habilitado. A Medida Provisória do Bom Condutor premia quem não acumula infrações em 12 meses com a renovação automática da CNH. Hoje, o prazo de renovação é de 10 anos para motoristas com menos de 50 anos, cinco anos entre 50 e 69, e três anos a partir dos 70. Pela nova regra, o “condutor ficha limpa” não precisará voltar ao Detran a cada 10 anos: ele renova apenas quando muda de faixa etária – aos 50, aos 60 e aos 70 anos – mantendo-se adimplente e sem pontos na carteira. É um incentivo direto ao bom comportamento no trânsito, que equilibra a lógica atual, em que só o mau condutor é “lembrado” pelo sistema.
A mesma MP reduz em 40% o valor dos exames médico e psicológico obrigatórios na renovação e na obtenção da CNH e torna o documento digital gratuito pelo aplicativo CNH do Brasil, sem obrigatoriedade de emissão da carteira impressa – que passa a ser uma escolha do cidadão, não uma imposição.
Em paralelo ao lançamento da CNH do Brasil, o Congresso derrubou o veto presidencial que dispensava o exame toxicológico na primeira habilitação das categorias A e B, tornando novamente obrigatório o teste para quem vai tirar carteira de moto ou de carro de passeio. O exame, que já era exigido de motoristas profissionais das categorias C, D e E, passa a ser condição para obter qualquer primeira CNH, com custo hoje estimado entre R$ 100 e R$ 160, conforme dados de laboratórios do setor. A medida é apresentada como reforço de segurança viária, mas reacende o debate sobre o impacto financeiro adicional para o candidato de baixa renda justamente quando se procura baratear e simplificar as demais etapas do processo.
Como sempre, já houve a reação corporativista. Entidades que representam autoescolas anunciaram articulação para que a Confederação Nacional do Comércio (CNC) questione a norma no STF defendendo tratar-se de uma medida “improvisada, insegura e sem diálogo” – embora o texto da resolução tenha passado por consulta pública e sido aprovado por unanimidade num conselho que reúne diversos órgãos de governo. O discurso tenta se ancorar na segurança viária, mas ignora que a própria CNH do Brasil mantém provas rígidas, fortalece a fiscalização sobre instrutores autônomos e amplia o acesso à formação formal, hoje negada a milhões de condutores que já estão nas ruas sem habilitação.
Embora seja justa a preocupação na defesa de empregos e faturamento no setor de autoescolas, não se pode transformar uma pauta de interesse de corporação em discurso exclusivo sobre segurança no trânsito, especialmente quando os dados oficiais mostram que o modelo atual deixou milhões de pessoas fora da legalidade justamente pelo preço proibitivo do processo. Ao contrário do que sugerem os críticos, a proposta abre novas oportunidades de trabalho: instrutores autônomos serão formados gratuitamente pelo Ministério dos Transportes e seguirão autorizados e fiscalizados pelos Detrans; as próprias autoescolas seguem existindo, mas em um ambiente de maior concorrência, em que terão de disputar alunos por preço e qualidade, não por reserva de mercado garantida em lei.
No Congresso, a ofensiva também ganhou forma a partir de articulações políticas e corporativas. O deputado Coronel Meira protocolou o PDL 1031/2025 para sustar os efeitos da Resolução 1.020/25 antes mesmo de sua publicação no Diário Oficial, alegando ilegalidade, fragilização da formação e prejuízos econômicos às autoescolas. É um movimento incomum: usar um PDL de maneira preventiva, não para reagir a uma norma em vigor, mas para impedir que ela chegue a produzir qualquer efeito. Ademais, o PDL poderia sustar atos do Poder Executivo apenas quando houvesse extrapolação do seu poder regulamentador, o que não foi o caso. Na prática, o recado é claro – se uma decisão técnica contraria um setor organizado, barra-se a decisão antes que o país possa experimentá-la.
Paralelamente, a Câmara instalou uma comissão especial para analisar um antigo projeto (PL 8.085/2014) e outros textos que vão na direção oposta da resolução, reforçando a obrigatoriedade de aulas práticas em autoescolas. Em outra frente, o PL 1.111/25, já avançando no Legislativo, busca “fortalecer o papel dos CFCs”, restringindo ou mesmo esvaziando a atuação autônoma de instrutores que a nova resolução procura habilitar. É um contramovimento claro à CNH do Brasil, que tenta restaurar pela via legal o monopólio que o Contran acaba de derrubar.
É saudável que o Parlamento debata política pública, inclusive para corrigir eventuais excessos do Executivo. Mas há uma diferença entre legislar sobre diretrizes gerais de trânsito e atuar como extensão do lobby de um segmento específico, reerguendo barreiras que o Contran, amparado no Código de Trânsito, procurou derrubar. No limite, transformar cada ato regulatório em guerra de PDL significa capturar a política de trânsito por interesses organizados e perpetuar o modelo onde quem já tem acesso à CNH decide, na prática, quem continuará excluído dela.
É importante destacar que o tema vem sendo discutido desde pelo menos julho, teve consulta pública, foi debatido em audiências e alvo de sucessivas análises técnicas. O próprio governo apresentou estimativas, análise de impacto e comparações internacionais. O Centro de Liderança Pública (CLP) produziu nota técnica defendendo a medida como caminho para reduzir custos, ampliar acesso e distribuir renda hoje concentrada nas autoescolas, com a criação da figura do instrutor autônomo. Agora, com a formalização da CNH do Brasil e a MP do Bom Condutor, essa visão ganha lastro normativo e passa a dialogar com uma política mais ampla de inclusão produtiva e segurança viária.
Nada disso significa que a Resolução 1.020/25 seja intocável. O que vemos, porém, é outra coisa: uma tentativa de restaurar, pela via judicial e legislativa, a lógica do monopólio, em que o Estado obriga o cidadão a comprar um serviço de um tipo específico de prestador, e de esvaziar inclusive medidas de estímulo à boa conduta no trânsito, como a renovação automática para o condutor ficha limpa.
A pergunta que deveria orientar o STF, o Congresso e o próprio Contran é simples: qual modelo melhor atende ao interesse público – aquele que garante a liberdade de escolha, amplia a legalização de condutores, reduz custos e premia quem dirige bem, ou o que preserva um arranjo que deixou milhões sem CNH, encareceu o acesso e transformou a habilitação em luxo? A resolução recém-aprovada não é um ataque às autoescolas; é um convite para que elas disputem alunos por preço e qualidade, enquanto o Estado volta a olhar para o que realmente importa: gente habilitada, dentro da lei e com mais segurança nas ruas.
