18 de dezembro de 2025
Politica

STF sem freios: a tutela silenciosa que o Brasil finge não ver

Há momentos em que a República se desnuda diante dos fatos. A cena em que um ministro do Supremo embarca no mesmo jato particular que o advogado de um investigado – e, dias depois, assume a relatoria do inquérito que o envolve e impõe rigoroso regime de sigilo – não é deslize social nem falha de etiqueta republicana. É sintoma. E não é um sintoma qualquer.

A sequência revela, de forma quase didática, um país que já vive sob um regime de tutela judicial informal, porque condensa, em um único gesto, todos os vícios estruturais que a República insiste em ignorar: a erosão da aparência de imparcialidade, a convivência promíscua entre relações privadas e decisões públicas, a hipertrofia das decisões monocráticas sem contrapesos e o uso estratégico do sigilo como barreira contra qualquer escrutínio. Não é o voo em si que importa, mas o que ele simboliza – um sistema em que a confiança institucional depende menos de regras claras e mais do pudor individual de seus agentes, sinal evidente de que os limites externos falharam e de que o país já opera sob um regime de poder imune à fiscalização efetiva.

Esse fato, por si só inadmissível em qualquer democracia madura, aqui é apenas a superfície. Soma-se à participação de ministros em eventos financiados por grupos com processos na própria Corte; ao sigilo convertido em escudo recorrente; à hermenêutica elástica que reescreve a Constituição sem autorização do constituinte; e à promiscuidade institucional revelada em vínculos pessoais capazes de influenciar decisões de alcance nacional. Não é irrelevante, nesse contexto, a contratação milionária de escritório ligado à esposa de um ministro – fato público, notório e juridicamente relevante para o debate sobre aparência de parcialidade e dever de prudência –, e assim o quadro torna-se incontornável: promiscuidade institucional não é exceção; tornou-se padrão.

Enquanto isso, o Legislativo permanece desfuncionalizado, parece ter abdicado de sua prerrogativa de contrapeso. Omisso diante da hipertrofia monocrática, tolera decisões que reconfiguram a Constituição por via interpretativa inconvincente sob qualquer perspectiva jurídica séria – como a recente limitação, por ato individual, dos legitimados para apresentar pedidos de impeachment de ministros do Supremo. O Congresso converteu-se em espectador de sua própria irrelevância, permitindo que o medo de retaliações judiciais se sobreponha ao dever de preservar a separação dos poderes. A imprensa divide-se entre indignação legítima e autopreservação. A sociedade, exaurida por crises sucessivas, já não distingue com nitidez aquilo que deveria ser inaceitável.

O Brasil não está “caminhando” para uma ditadura do Judiciário. Já vive sob sua forma pós-moderna: a tutela informal. É um regime que não necessita de tanques, mas de discursos moralizantes; que não se impõe pela força bruta, mas pela narrativa conveniente de que “proteger a democracia” exige a suspensão temporária de seus ritos fundamentais. Sob esse manto retórico, a transparência torna-se um estorvo e o sigilo, uma virtude; o controle da narrativa substitui o império da lei, criando uma zona cinzenta em que o arbítrio se disfarça de salvação nacional. E a ausência de accountability transforma o ápice do Judiciário em zona de não auditabilidade. Onde não há accountability, qualquer poder se converte, cedo ou tarde, em poder arbitrário.

A história não é silenciosa sobre isso. Roma colapsou quando prerrogativas públicas foram usadas como extensões de interesses privados. Montesquieu (O Espírito das Leis) advertiu que todo poder tende a abusar quando não há limites externos. Madison (O Federalista nº 51) lembrou que controles recíprocos não são luxos, mas mecanismos de sobrevivência institucional.

A Constituição de 1988 reconhecia essas lições – a prática institucional brasileira, hoje, parece tê-las esquecido.

Nesse cenário, a proposta do ministro Edson Fachin de criar um Código de Ética para o Supremo é bem-intencionada, mas insuficiente. Se nem a Constituição – mais clara e obrigatória – é cumprida, por que um código interno seria? E, sobretudo, quem o aplicaria, se os mecanismos externos de responsabilização inexistem na prática, foram esvaziados ou se tornaram ineficazes? Autorregulação não substitui freios e contrapesos. Sem limites externos, qualquer código reduz-se a gesto simbólico.

O problema, portanto, não é apenas moral: é estrutural. E soluções estruturais reclamam coragem para reformas concretas, não apenas éticas. É imperativo implementar:

  1. Reintrodução de limites estritos às decisões monocráticas, com revisão imediata e obrigatória pelo colegiado.
  2. Governança Externa, com a instituição de um órgão independente de controle administrativo e disciplinar, com composição mista e participação da sociedade civil, superando o corporativismo da autorregulação.
  3. Revisão legislativa do sigilo judicial, para impedir sua degeneração em opacidade institucional.
  4. Regulamentação rigorosa sobre vínculos econômicos e atividades privadas de familiares de autoridades, preservando a imparcialidade.
  5. Reativação do papel fiscalizador do Congresso, com comissões permanentes de controle da jurisdição constitucional e prazos para deliberação sobre pedidos de impeachment de ministros.
  6. Debate sério sobre o fim do foro privilegiado de deputados e senadores: extinção da prerrogativa de foro para parlamentares, removendo possível instrumento de chantagem institucional que, nas palavras do senador Eduardo Girão, submete o Legislativo ao medo e à inação.
  7. Transparência compulsória e integral sobre agendas, viagens, hospedagens, encontros e financiadores de eventos de magistrados.

Nada disso ameaça o Supremo. Pelo contrário: restaura a confiança pública, que é sua verdadeira fonte de legitimidade.

Democracias não caem de repente; se desgastam por acomodações sucessivas. Por pequenas permissões que corroem o espírito republicano. Por silêncios que substituem o dever de vigilância.

O Brasil pode continuar fingindo que não vê o que está diante de si. Mas quando uma República passa a depender do pudor individual de seus juízes para manter o equilíbrio institucional, é porque os freios já falharam – e a democracia segue adiante, sozinha, sem os trilhos que deveriam guiá-la. Uma democracia que depende do pudor de seus juízes já não depende mais de suas instituições.

 

 

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