23 de dezembro de 2025
Politica

Antes do gatilho: o papel das contratações públicas no combate ao feminicídio

Há poucos dias, participei de um seminário sobre o combate à violência contra a mulher. Preparei minha fala sob o impacto de estatísticas brutais com as quais encerramos 2025, tendo em vista o recorde de feminicídios na capital paulista desde o início da série histórica. No entanto, entre o momento em que rascunhei aquelas palavras, relembrando as últimas inserções sobre o tema na legislação federal que rege as licitações e contratos administrativos, e o instante em que escrevo este artigo, a realidade se encarregou de atualizar a tragédia. As notícias se renovam com uma velocidade atroz, provando que a barbárie não espera seminários, não respeita o calendário festivo e não dá trégua.

Deveríamos estar em um momento de balanço e celebração. Contudo, a realidade bate à nossa porta exigindo que não fechemos os olhos. Os casos recentes como o de Tainara, arrastada por um quilômetro na Zona Norte de São Paulo, ou a execução de trabalhadoras no Rio de Janeiro pelo simples fato de ocuparem posições de chefia, são sintomas de uma patologia social profunda. Não são crimes passionais, são crimes de ódio. É a misoginia em sua forma mais crua, punindo a existência e a ascensão feminina.

Como advogada e atual gestora pública, acompanhei com esperança a aprovação da Lei 14.994 em 2024, que elevou a pena do feminicídio para até 40 anos. É um avanço jurídico inegável e uma mensagem clara do Estado de que não toleraremos a violência. Mas precisamos ter a coragem de admitir a amarga verdade de que a lei, sozinha, chega tarde. O Direito Penal atua sobre o escombro, pune o agressor, mas não devolve a vida, não restaura a mãe aos seus filhos, não desfaz o trauma.

É preciso cercar a impunidade por todos os lados. Nesse sentido, a tecnologia tem sido uma aliada vital da gestão municipal. O programa SmartSampa da cidade de São Paulo, com sua rede de videomonitoramento inteligente, transformou-se em uma ferramenta decisiva para a segurança das mulheres. Os números de capturas de foragidos impressionam e trazem um alento necessário, uma vez que estamos retirando de circulação estupradores, agressores e criminosos sexuais que, antes, apostavam na invisibilidade das ruas para continuarem impunes. Aqui, a inovação tecnológica cumpre seu papel mais nobre: impedir que esses indivíduos façam novas vítimas.

O desafio que se impõe, porém, é chegar antes do gatilho. E é aqui que a discussão deve transbordar das páginas policiais para as mesas de decisão estratégica da gestão pública. O enfrentamento à violência contra a mulher não é pauta exclusiva da segurança ou da assistência social, é um imperativo de todas as pastas, inclusive da Gestão.

O feminicídio é o topo de uma pirâmide que se sustenta em uma base larga e silenciosa, a começar pela piada machista no ambiente de trabalho, e evoluindo para o controle financeiro, o isolamento social, a violência psicológica. A indignação é imediata, mas insuficiente, para desarmarmos essa cultura precisamos estratégia institucional.

Por isso, a Prefeitura de São Paulo tomou uma decisão que considero um marco na forma como o poder público se relaciona com o mercado. Por meio da Escola Municipal de Administração Pública de São Paulo (EMASP), em parceria com a Secretaria de Direitos Humanos, lançamos um curso de enfrentamento à violência contra a mulher. Mas não paramos no caráter educativo. Transformamos a conscientização em requisito contratual.

A partir de agora, a realização deste curso será obrigatória para os funcionários que atuam no âmbito dos Contratos de Serviços de Mão de Obra Exclusiva e orientada para as demais que também terão obrigação em futuro breve. A empresa deverá assegurar que os colaboradores alocados na execução do contrato realizem o curso e comprovar ao longo da execução contratual os certificados de conclusão emitidos pela plataforma da EMASP como parte da documentação de regularidade na execução dos serviços.

Assim, partindo de uma lógica simples, porém implacável, somos a maior cidade compradora pública do país e se uma empresa deseja receber recursos desta cidade, ela deve, obrigatoriamente, respeitar os valores civilizatórios desta cidade. Não financiaremos, direta ou indiretamente, a cultura da omissão.

Isso é o que chamo de usar a “caneta” da gestão para salvar vidas. É o uso estratégico do poder de compra do Estado (o procurement público) como ferramenta de transformação social. Estamos dizendo ao mercado que a eficiência técnica de um fornecedor não nos serve se ela vier desacompanhada de responsabilidade humana.

O curso, disponível gratuitamente e online para servidores públicos, contratados terceirizados e cidadãos, foi construído em linguagem simples para ensinar a identificar sinais e agir. O conhecimento é, de fato, a única vacina que temos contra a ignorância que mata.

Convido a sociedade civil e o setor privado a se unirem a nós neste esforço. Não se trata apenas de obter um certificado ou cumprir uma burocracia. Trata-se de garantir a sobrevivência das mulheres da nossa cidade. Enquanto os números continuarem a nos assombrar, nenhuma celebração de fim de ano será completa. A mudança de cultura é urgente, e ela começa quando decidimos que nenhuma violência será tolerada, nem financiada.

 

 

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