30 de dezembro de 2025
Politica

‘Chantilly de pimenta’ nos olhos: policiais promovem ‘tortura química’ com detentos, diz relatório

Confinados em um pátio da penitenciária ‘Ferrugem’, em Sinop – município com 200 mil habitantes a 500 quilômetros de Cuiabá -, e acuados por cães ferozes e policiais armados com pistolas 9 mm, detentos relatam conviver diariamente com humilhações, espancamentos e torturas. As denúncias de abusos atribuídos à força de elite da polícia penal de Mato Grosso, a SOE (Serviço de Operações Especializadas), constam de relatório do Tribunal de Justiça do Estado, que fez uma inspeção na unidade prisional em outubro.

O documento de 240 páginas, ao qual o Estadão teve acesso, descreve violências atribuídas a policiais penais de ‘Ferrugem’, que mantém 1.595 prisioneiros sob o regime do medo. O presídio leva esse nome por sua estrutura precária e métodos medievais, segundo relatos de testemunhas de agressões.

Em mais de uma ocasião, dizem os depoimentos, os agentes teriam demonstrado prazer e regozijo ao submeter detentos a episódios de tortura e humilhação.

Denúncias de abusos são atribuídas à força de elite da polícia penal de Mato Grosso
Denúncias de abusos são atribuídas à força de elite da polícia penal de Mato Grosso

Segundo os prisioneiros, a corporação atua com o aval da direção do presídio e tem a convicção de que, dentro da prisão, “ordens externas não têm eficácia”.

O diretor da unidade, Adalberto Dias de Oliveira, o subdiretor Antônio Carlos Negreiros do Santos e o policial Paulo César Araújo Costa – grupo que, segundo o Tribunal de Justiça de Mato Grosso, orquestrava as torturas no presídio -, foram afastados das funções na penitenciária por um prazo inicial de 180 dias. Mesmo fora de seus cargos, eles continuam recebendo remuneração.

O Estadão busca contato com os servidores afastados da penitenciária Osvaldo Florentino Leite Ferreira – a ‘Ferrugem’. O espaço está aberto.

‘Procedimento chantilly’

O relatório indica que uma tática predileta e amplamente utilizada pelos agentes penitenciários era o ‘procedimento chantilly’ – spray de pimenta aplicado nas mãos do policial, que em seguida esfregava o produto no rosto e nos olhos dos presos.

'Vtima fica sem qualquer possibilidade de defesa, higienização ou atendimento médico imediato', destaca o documento
‘Vtima fica sem qualquer possibilidade de defesa, higienização ou atendimento médico imediato’, destaca o documento

A ordem que afastou os diretores – expedida no dia 19 passado pelo desembargador Orlando de Almeida Perri, do Tribunal de Justiça de Mato Grosso – cita que o ‘procedimento chantilly’ consiste em um “método de tortura com agente químico” e que a prática é adotada no presídio há pelo menos cinco anos.

“O policial penal aciona o spray de pimenta na própria mão, gerando uma espuma viscosa com o produto químico; em seguida, esfrega essa espuma diretamente nos olhos do recluso, geralmente quando este se encontra em posição de submissão”, anota o relatório do tribunal, anexado à decisão do desembargador que rejeitou o pedido de habeas corpus de um dos detentos após inspeções realizadas na unidade.

Penitenciária Osvaldo Florentino Leite Ferreira, conhecida como 'Ferrugem'
Penitenciária Osvaldo Florentino Leite Ferreira, conhecida como ‘Ferrugem’

“A vítima fica sem qualquer possibilidade de defesa, higienização ou atendimento médico imediato”, segue o documento. “Os policiais entram no Raio (conjunto de celas) sem motivo e fazem procedimentos fora do horário normal, sem motivo algum.”

A inspeção conduzida pelo Grupo de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Prisional e Socioeducativo do Tribunal de Justiça de Mato Grosso detalha que o ‘procedimento chantilly’ cria um “ambiente de risco gravíssimo pela aspiração concentrada do produto químico em espaço fechado, superaquecido e sem aeração adequada”.

Oito detentos ouvidos pelo grupo de fiscalização do Tribunal afirmaram que o 'chantilly' é expediente recorrente na penitenciária
Oito detentos ouvidos pelo grupo de fiscalização do Tribunal afirmaram que o ‘chantilly’ é expediente recorrente na penitenciária

O local enclausurado que o Tribunal se refere é conhecido como “latão” dentro da penitenciária – uma cela superlotada que concentra as mais variadas práticas de tortura, segundo o relatório.

“As imagens revelam uma forma particularmente cruel de tortura constante dos relatos dos presos e imagens: alguns policiais disparam contra as pessoas privadas de liberdade através da “boqueta” do latão das celas. O modus operandi consiste no deslocamento do policial até o cubículo, a abertura da “boqueta” (abertura utilizada para a entrega de alimentação) e a realização de disparos indiscriminados (um, dois ou até três) para o interior da cela, que se encontrava superlotada.”

“Em alguns momentos, dois policiais agem simultaneamente, efetuando disparos nas “boquetas” de celas vizinhas, caracterizando uma agressão covarde e deliberada contra indivíduos confinados e sem possibilidade de defesa”, descreve o documento.

Indagada pela reportagem sobre as denúncias, a Secretaria de Estado de Justiça de Mato Grosso disse que instaurou procedimento administrativo para “examinar de forma minuciosa e imparcial os fatos, que ocorreram durante um início de motim por parte dos reeducandos, que tentaram, na ocasião, destruir as celas da carceragem e avançar contra os policiais penais”. (leia a íntegra da manifestação abaixo)

‘Uso intenso de chantilly’

Em depoimento ao grupo de fiscalização do Tribunal de Justiça de Mato Grosso, o detento Diogo Henrique Damasceno Moraes contou que no dia 26 de outubro, após a janta, percebeu que um policial entrou no Raio 7 da cadeia para uma verificação de rotina. Segundo ele, o policial estava embriagado.

Durante a inspeção, agentes teriam ‘sequestrado’ um detento identificado como Hernandez, o que provocou revolta da carceragem, que exigia a devolução do preso à cela, momento em que um dos policiais efetuou um disparo de calibre 12, sem registro de feridos, segundo o relatório.

Agentes teriam demonstrado prazer ao submeter detentos a episódios de tortura, assinala o relatório
Agentes teriam demonstrado prazer ao submeter detentos a episódios de tortura, assinala o relatório

“Após isso, os presos ‘chacoalharam’ o Raio pedindo para a polícia parar de ‘zoar’”, assinala o Tribunal.

“Em retaliação, todos os detentos do Raio foram levados para a quadra. Lá, os policiais começaram a zombar deles com a arma calibre 12 e a soltar cachorros, o que resultou em mordidas em dois ou três rapazes”, relatou o detento.

Diogo disse que o primeiro contato com o ‘procedimento chantilly’ foi em 2024, durante uma tentativa de fuga empreendida por outros detentos. Ele narrou que “estava na cela e foi espancado”. Que sofreu com o uso intenso de chantilly (spray de pimenta) e que eles sempre realizam tortura psicológica”, destaca o depoimento.

Outros oito detentos ouvidos pelo grupo de fiscalização do Tribunal afirmaram que o ‘chantilly’ é expediente recorrente na penitenciária.

Para a Justiça de Mato Grosso, “os relatos dos detentos, corroborados pelas imagens das câmeras, evidenciam que indivíduos inescrupulosos estão utilizando o arsenal estatal para a prática de crimes de tortura”.

No entendimento da Corte, “os elementos colhidos na inspeção de 2025 evidenciam que a forma de atuação da unidade de Sinop projeta, perante presos e familiares, a imagem de um poder paralelo que se sobrepõe às decisões do Tribunal de Justiça e do GMF – Grupo de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Prisional.”

COM A PALAVRA, A SECRETARIA DE ESTADO DE JUSTIÇA DE MATO GROSSO

A Secretaria de Estado de Justiça (Sejus) recebeu no dia 12 de dezembro o relatório de inspeção realizado pelo Tribunal de Justiça de Mato Grosso (TJMT) na Penitenciária Dr. Osvaldo Florentino Leite Ferreira, em Sinop.

Paralelamente à referida inspeção, a Sejus instaurou procedimento administrativo de apuração, conduzido pela Corregedoria-Geral da instituição, com a finalidade de examinar de forma minuciosa e imparcial os fatos, que ocorreram durante um início de motim por parte dos reeducandos, que tentaram, na ocasião, destruir as celas da carceragem e avançar contra os policiais penais.

Esta Secretaria ressalta ainda que, durante o ano de 2025, não houve denúncia formal, em nenhum órgão fiscalizador, sobre suposta tortura na referida penitenciária.

A Sejus reitera ainda que não coaduna com nenhum tipo de abuso ou prática criminosa e, caso seja confirmado, serão adotadas as medidas cabíveis para a devida responsabilização.

 

 

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