A eloquência sumiu
Para Montesquieu, o Parlamento é o mais importante dentre os Poderes. É a caixa de ressonância das aspirações populares. Um lugar em que a palavra é rainha. Sempre se elegeu a eloquência como o fator primordial para o convencimento dos pares, a fim de se obter consenso na edição de normas a todos aplicáveis. Até porque, são o reflexo da vontade popular.
O Parlamento brasileiro já teve luminares. Em todos os níveis. Mas pense-se naqueles parlamentares que, há um século, debatiam os graves problemas financeiros da República e a anistia aos revoltosos de 1922 e 1924.
Assis Brasil foi um deputado federal que deixou nome nas letras nacionais. Estudava profundamente as questões sociais em evidência nas vésperas do novo regime. Impregnou-se da sabedoria contemporânea e, como orador, arrebatava as galerias com frases consagradas.
Quando provocado, fugia ao debate com um rugido de orgulho, para que prevalecesse contra a verdade por acaso enunciada, o seu meio século de paixão pela República e a sua condição de Chantecler do regime.
Era uma figura respeitável, rija e sólida, voz de homem habituado a gritar nos espaços livres e, por isso mesmo, uma das mais fortes da Câmara.
Já Francisco Morato, que era considerado orador “da esquerda”, é uma figura memorável, hoje – infelizmente – pouco lembrada. Professor em Direito na São Francisco, foi eleito pelo Partido Democrático e honrou, na Câmara tupiniquim, como honraria em qualquer outro país culto, o eleitorado que o escolheu.
Na tribuna, Francisco Morato era o grande artista do gesto. Ereto, firme, começava a discorrer em voz sempre igual, alongando uma sílaba de cada palavra, não como os pregoeiros de praça pública, arrebatadores da multidão, mas com um tom técnico da oratória, que tinha um modelo só seu. Por ele construído e perenemente aperfeiçoado.
A sua oração era mais uma palestra em voz alta, era mais um conselho blandicioso do que propriamente um discurso. Era o homem que procurava convencer sem gritaria, e que para isso buscava acentuar cada frase e demorar-se em cada vocábulo.
A eloquência estudada, a ciência de convencer que ele transformou em uma arte, é completada pela gesticulação. Braços longos e magros saindo das mangas largas e negras, o dedo indicador saindo, fino e longo, de cada uma das mãos fechadas, era com eles que Francisco Morato fazia todo o seu jogo oratório. Estendendo-os para o auditório, ou contra si mesmo, esses dedos, ora um, ora outro, descreviam verdadeiras parábolas na ponta dos braços sem carne. Acompanhando a palavra, eles passavam da direita para a esquerda, da esquerda para a direita, cruzavam-se no caminho para transformar-se de repente em dez dedos abertos sobre o peito do orador.
Homens como esse desapareceram do Parlamento. Quais os grandes oradores que hoje seduziriam as massas? Ou estas, mergulhadas nas telinhas, têm condições de ouvir mais do que algumas poucas palavras, num estilo tik-tok ou memes nem sempre criativos e, de qualquer forma, tudo a dispensar o uso da palavra?
Além do domínio gestual, Francisco Morato era um cultor da gramática. Possuía inegável domínio sobre o vocabulário português. Suas aulas eram verdadeiros capítulos de tratados que poderiam conter a mais convincente erudição à época. E não era fórmula vazia para impressionar as pessoas. Ele era assim mesmo. Fidalgo. Nobre. Requintado.
Ele frequentava assiduamente a Fazenda Itupu, de seu colega Herculano de Freitas, que também foi lente da Faculdade de Direito do Largo e costumavam andar a cavalo. Contam os herdeiros do notável genro de Francisco Glicério que um dia o alazão disparou e Morato não conseguia freá-lo. Acabou caindo do cavalo.
Não se machucou e enquanto procurava eliminar a terra de suas limpíssimas vestes de montar, Herculano de Freitas indagou: – “Mas Morato, esse animal é treinado. Por que não conseguiu dominá-lo?”.
– “Eu bem que tentei! Falei seguidas vezes: “Refreai fogoso corcel!”. E, um pouco frustrado: – “Ele não obedeceu!”.
Quem hoje ousaria comparar o Parlamento atual com homens desse nível? Só dizendo como Ulysses Guimarães: – “Criticas o Congresso de hoje? Aguarde o próximo!”.
