30 de dezembro de 2025
Politica

A farra dos coronéis da PM de SP: 60 carros e meio batalhão fora das ruas para servir novos oficiais

O projeto de reestruturação da Polícia Militar de São Paulo pode trazer um custo extra para os cofres do Estado de cerca de R$ 120 milhões em 2026 e retirar meio batalhão de policiais do patrulhamento das ruas para atender ao aumento de 46% do total de coronéis. Isso porque cada novo coronel terá direito a uma Trailblazer e um Corolla descaracterizados, além de motoristas, seguranças e ordenanças.

O coronel José Augusto Coutinho, comandante da PM, durante sua posse e o então secretário da Segurança, Guilherme Derrite: plano para reestruturar a corporação
O coronel José Augusto Coutinho, comandante da PM, durante sua posse e o então secretário da Segurança, Guilherme Derrite: plano para reestruturar a corporação

Isso significa que a criação dos novos cargos pode levar a PM a providenciar até 60 carros para os coronéis – uma Trailblazer nova custa R$ 411 mil. Só com carros novos, a conta pode chegar a mais de R$ 10 milhões. Mas além deles, seriam necessários dois motoristas e dois seguranças, além de dois ordenanças para cada coronel.

Ao todo, segundo cálculos feitos por coronéis da PM consultados pelo Estadão, cerca de 180 policiais militares seriam afastados do patrulhamento das ruas para atender aos novos coronéis. Ou seja, além de não aumentar um único soldado, cabo ou sargento do efetivo atual da PM (73.895 cabos e soldados e 13.604 sargentos e subtenentes) para dar mais segurança à população, o projeto do governo de Tarcísio de Freitas ainda retira das ruas metade de um batalhão para servir aos novos coronéis.

A razão disso tudo, de acordo com oito coronéis da ativa e da reserva, o aumento do número de coronéis dos atuais 64 para 94 tem só um objetivo: garantir ao ex-secretário Guilherme Derrite o poder de nomear uma enxurrada de coronéis por meio do atual secretário-adjunto, o tenente-coronel Paulo Maculevicius, o que lhe garantiria o domínio da PM pelos próximos cinco anos. Derrite quer nomear os oficiais das turmas de 2000 e 2001 da Academia do Barro Branco.

Há, no entanto, um segundo efeito da criação dos 30 novos coronéis: o engessamento das promoções por cinco anos. Atualmente, cada turma de oficiais faz em média dez coronéis. Com a criação ao mesmo tempo de 30 vagas, duas turmas concentrariam sozinhas a maioria dos coronéis, o que tornaria as demais turmas reféns desses coronéis por cinco anos, fenômeno que se repetiria depois quando esse grupo passar para a reserva.

O rompimento do fluxo de carreira é outro aspecto salientado pelos coronéis consultados. Eles citam o caso da turma de 1996 da Academia do Barro Branco, inflada artificialmente, o que teve como efeito paralisar as promoções das turmas posteriores, aumentando o tempo de permanência delas como 2º tenente. Além disso, o projeto prevê o aumento de 726 no número total de oficiais, passando dos atuais de 5.483 para 6.209, apesar de serem os praças os responsáveis pela quase totalidade do patrulhamento das ruas.

Benesses para os tenentes e restrições para os praças

Mas as benesses não param por aí. Ao apresentar o projeto para as entidades de classe da PM há duas semanas, o comando da corporação também mostrou que todos os cerca de 2 mil 2.º tenentes da corporação seriam promovidos “por merecimento”, sem que necessitem demonstrar o mérito além do fato de terem um ano na função. E assim , eles teriam os salários aumentados em cerca de R$ 2,5 mil.

Plano de restruturação da PM não prevê aumentar o número de soldados, cabos, sargentos e subtenentes responsáveis pelo patrulhamento das ruas; na foto, viaturas da PM compradas pelo governo para o policiamento da capital
Plano de restruturação da PM não prevê aumentar o número de soldados, cabos, sargentos e subtenentes responsáveis pelo patrulhamento das ruas; na foto, viaturas da PM compradas pelo governo para o policiamento da capital

Além disso, o projeto prevê que todos os futuros aspirantes da PM sejam promovidos de imediato a 1.º tenente, deixando a patente de 2.º tenente reservada aos praças que atingem o oficialato. Dessa forma, a reestruturação embute um aumento salarial para os 2.º tenentes em detrimento dos demais oficiais e traria um custo anual de pouco mais de R$ 100 milhões por ano aos cofres públicos.

A razão disso seria o fato de a diferença salarial atual entre os 2.º tenentes e os 1.º tenentes ser a maior entre os níveis hierárquicos da PM. Essa diferença existe em razão da paridade de salários da ativa e da reserva. Como existem muitos praças que se aposentam como 2.º tenente, se o salário da ativa melhorar, automaticamente os aposentados têm de ser reajustados, o que onera os cofres públicos.

O que o projeto de reestruturação prevê nesse caso é aumentar os salários dos tenentes formados pelo Barro Branco, promovendo-os a 1.º tenente, sem, no entanto, aumentar as aposentadorias dos 2.º tenentes. Ao agradar mais uma vez aos oficiais, o comando corre o risco, segundo um coronel, de despertar uma enxurrada de judicialização dos 2.⁰ tenentes da reserva, pleiteando promoções a 1.⁰ tenente para não serem passados para trás.

O projeto ainda traria outro efeito perverso para a tropa. É que o acesso dos praças ao oficialato ficará restrito aos subtenentes. Até agora, essa possibilidade era aberta aos praças que tivessem mais de dez anos de serviço e curso superior. Todos podiam prestar o Curso de Habilitação de Oficiais Auxiliares da PM (CHOAPM), o que não ocorre mais com o novo projeto. Pior, os subtenentes que quiserem ser promovidos deverão estar entre o grupo dos um terço mais velhos.

Com isso, quando for promovido a 2.º tenente – patente que ficará reservada aos praças –, o suboficial já estará quase no fim de carreira, sem ter chance de atingir outros níveis, como capitão e major. Ou como alertou um coronel: a chuva de estrelas para os subtenentes, que inevitavelmente serão usados como comando de força patrulha, praticamente, oficializará a carreira única. E vai afastar os oficiais das ruas, do patrulhamento

A palavra da Secretaria e do governador

Um dos argumentos do comando da PM para aumentar o quadro de coronéis é afirmar que a PM paulista é quem tem a menor proporção de subordinados por comandantes entre as polícias de todo o Brasil. Já o governador Tarcísio de Freitas confirmou ao Estadão, no dia 16, durante cerimônia no Comando Militar do Sudeste, ter conhecimento da proposta. “Estamos trabalhando nisso”, afirmou. Em nota enviada à coluna, a Secretaria da Segurança Pública informou que:

O governador Tarcísio de Freitas, durante solenidade no Comando Militar do Sudeste em que falou sobre o projeto de reestruturação: 'Estamos trabalhando nisso
O governador Tarcísio de Freitas, durante solenidade no Comando Militar do Sudeste em que falou sobre o projeto de reestruturação: ‘Estamos trabalhando nisso”

“A proposta de reestruturação das carreiras policiais militares está em análise pelas áreas técnicas da administração estadual. A avaliação não impacta o processo de contratação de policiais. Desde o seu início, a atual gestão tem trabalhado para reduzir o déficit histórico na Instituição, tendo formado mais de 9,8 mil novos policiais militares. Atualmente, 2,7 mil estão em fase de capacitação, e outras 2,3 mil vagas já foram autorizadas para provimento em novos concursos.”

Coronéis ouvidos pelo Estadão afirmam que o total de policiais contratados pelo governo ainda é insuficiente para cobrir os chamados claros do efetivo, a diferença entre o efetivo fixado (93.802) e o existente, que chegou a 15% do total da corporação em 2023.

A farra dos coronéis no Brasil

Entre os críticos da proposta de reestruturação da PM de São Paulo está o ex-secretário nacional de Segurança Pública, coronel José Vicente da Silva. “Estamos querendo copiar os maus exemplos de outros Estados onde há lambança generalizada. Se aumentar para 94 coronéis, teríamos aproximadamente 1 coronel para mil PMs. No Amazonas há um coronel para 107 subordinados. Se aplicássemos essa proporção à PM de São Paulo, ela teria 747 coronéis”.

E assim seria, segundo o coronel, se São Paulo copiasse a proporção de coronéis para soldados existentes também em outros Estados. Uma explicação para essa distorção é simples. É que as PMs de outros Estados copiam a mesma estrutura de cargos que a PM paulista, apesar de terem um efetivo menor. É como se uma pequena empresa quisesse ter o mesmo número de diretorias que um grande banco com os mesmos salários e benesses.

No Piauí, por exemplo, existe um coronel para cada 127 policiais; na Paraíba, esse número é de 158; no Tocantins, 175; no Pará, essa proporção fica em um para cada 186 homens e mulheres. Já no Ceará, ela chega a 269. Se a PM paulista quisesse igualar a proporção cearense, ela teria de contar com 297 coronéis. A realidade que mais se aproxima de São Paulo é a do Rio Grande do Sul, onde a proporção de policiais/coronéis é de um para 642.

O coronel José Vicente da Silva Filho, ex-secretário nacional de Segurança Pública: crítico das distorções existentes na proporção de chefes e subordinados nas PMs
O coronel José Vicente da Silva Filho, ex-secretário nacional de Segurança Pública: crítico das distorções existentes na proporção de chefes e subordinados nas PMs

A exemplo de São Paulo, cada um desses coronéis nos Estados tem direito a carros, ordenanças, motoristas e seguranças, o que multiplica o efeito das benesses muito além dos salários recebidos por esses oficiais. E isso sem contar com os que são agregados fora das corporações, em funções de assessoria fora da corporação. Mas a distorção é ainda pior nos Corpos de Bombeiros de Militares. Neles, a farra dos coronéis supera em muito a das PMs.

Diz o coronel José Vicente: “No Ceará, há um coronel para meros 50 subordinados. Nessa proporção a Polícia Militar de São Paulo teria 1.600 coronéis. O Corpo de Bombeiros do Ceará tinha 39 coronéis para 1.976 efetivos; nos 8 mil bombeiros de SP há 7 coronéis”. Ele lista outros absurdos. No Amapá, os bombeiros têm um coronel para cada 57 subordinados, No Amazonas, esse número é de 65, no Maranhão de 77 e no Rio de 93 – são 133 coronéis para 12 mil bombeiros. Caso São Paulo copiasse o Rio, os bombeiros paulistas teriam 124 coronéis.

Para o coronel José Vicente, “é necessário sobriedade nessas questões organizacionais”. Segundo ele, a ideia de progressão de carreira foi “longe demais”. “Todo mundo quer pirâmide invertida, muito chefe e pouco índio. Isso chegou a absurdos nos Estados, como mostram os do Nordeste. Ao invés de salário, os governadores dão promoções que não pagam boletos nem resolvem as crises de segurança.”

O ex-secretário nacional de segurança conclui assim sua manifestação sobre os coronéis: “Ninguém quer copiar a sóbria e competente polícia do Reino Unido (Inglaterra e País de Gales) que, em 2005, somava 104.483 efetivos, dos quais 47 estavam no topo da hierarquia (chief constable)”.

 

 

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