Independência do Banco Central e segurança institucional
A independência do Banco Central não é um detalhe técnico nem um capricho institucional. Trata-se de um dos pilares do funcionamento adequado do sistema financeiro e, por consequência, da própria economia brasileira. Países que relativizam a autonomia de suas autoridades monetárias e regulatórias tendem a pagar um preço elevado em termos de instabilidade, aumento do custo do capital, retração do investimento e perda de confiança.
A recente decisão do Banco Central do Brasil de liquidar o Banco Master, bem como as reações institucionais que se seguiram, recolocaram esse tema no centro do debate público. Independentemente do mérito específico do caso, que deve ser analisado nos foros competentes, o episódio chama atenção para uma questão mais ampla e permanente: qual é o espaço necessário de autonomia técnica das autoridades responsáveis pela supervisão do sistema financeiro.
Em uma democracia constitucional, o controle institucional é não apenas legítimo, mas indispensável. O controle judicial e o controle exercido pelos tribunais de contas integram o sistema de freios e contrapesos e são instrumentos essenciais para assegurar legalidade, transparência e responsabilidade. O problema surge quando esse controle deixa de se concentrar na legalidade, no procedimento e na motivação e passa a interferir no núcleo da decisão técnica.
No campo da regulação financeira, essa distinção é particularmente sensível. Bancos centrais existem para tomar decisões difíceis, muitas vezes impopulares, com base em critérios técnicos e avaliação de riscos sistêmicos. Essas decisões envolvem custos relevantes no curto prazo, mas são fundamentais para evitar danos muito maiores no médio e no longo prazo.
A liquidação de uma instituição financeira é uma medida extrema. Ela apenas se justifica quando outras alternativas já se mostraram insuficientes. Por isso mesmo, não se trata de uma decisão discricionária comum, mas do resultado de processos técnicos rigorosos, baseados em monitoramento contínuo, análise prudencial e avaliação de riscos. Submeter esse tipo de decisão a revisões que extrapolam o controle de legalidade pode gerar incentivos indesejáveis.
Há ainda um efeito colateral relevante, raramente discutido de forma explícita: o estímulo à judicialização estratégica. Quando decisões regulatórias técnicas passam a ser percebidas como facilmente revisáveis fora do seu âmbito próprio, cria-se incentivo para que agentes econômicos busquem no Judiciário não a correção de ilegalidades, mas a reversão de decisões legítimas. Esse movimento tende a ser explorado de forma assimétrica por agentes com maior capacidade de litigância, muitas vezes apostando no natural desconhecimento técnico do Judiciário sobre a dinâmica do mercado financeiro. O resultado é um ambiente de incerteza que penaliza quem cumpre as regras e premia comportamentos oportunistas.
Do ponto de vista econômico, a insegurança institucional altera o comportamento racional dos agentes públicos e privados. Se o regulador passa a antecipar que decisões duras estarão permanentemente sujeitas a contestação que vai além dos limites próprios do controle, o incentivo racional pode ser o adiamento de medidas necessárias ou a adoção de soluções menos eficazes. O custo dessa hesitação tende a se manifestar mais adiante, sob a forma de crises mais profundas e correções tardias.
O funcionamento do capitalismo depende de crédito. O crédito, por sua vez, depende de confiança. E a confiança não se sustenta sem instituições capazes de atuar com previsibilidade, autonomia técnica e responsabilidade. Não é por acaso que economias com bancos centrais fortes e respeitados apresentam maior estabilidade macroeconômica e menor custo de financiamento.
A autonomia do Banco Central não significa ausência de controle nem insubordinação institucional. Significa respeito ao desenho institucional que separa decisão técnica de fiscalização. Quando essa fronteira se torna imprecisa, o prejuízo não recai apenas sobre o regulador, mas sobre todo o ambiente econômico, afetando investimento, crescimento e geração de emprego.
O debate atual deveria servir como oportunidade para reafirmar esse arranjo institucional. Preservar a independência técnica do Banco Central é preservar a segurança jurídica, a estabilidade econômica e a credibilidade do país perante investidores e agentes econômicos.
Ao final, mesmo defensores convictos da liberdade econômica reconhecem que o Estado exerce papel central na organização do mercado. Trata-se, porém, de um papel que deve ser exercido dentro de limites claros. Afinal, mesmo liberais esclarecidos sabem que o Estado, o Leviatã, é um mal necessário, com o qual as liberdades individuais precisam conviver, ainda que sob vigilância constante.
