Vidas Negras Importam
Em mais uma importante e paradigmática decisão, o Supremo Tribunal Federal (STF) declarou, no último dia 18 de dezembro, por unanimidade, a existência de racismo estrutural no Brasil e a sistemática violação de direitos fundamentais da população negra. O julgamento da ADPF das Vidas Negras, como ficou conhecida a ação, finalmente nomeia o óbvio e endereça o tema, impondo ao Poder Executivo uma série de obrigações para além das medidas já adotadas para superar esse quadro histórico, como a elaboração de um novo plano nacional de combate ao racismo estrutural, incluindo ações concretas nas áreas da saúde, segurança pública, alimentar e proteção da vida, além da ampliação das políticas públicas de cotas raciais para acesso a oportunidades de educação e emprego e a criação de protocolos de atendimento em órgãos públicos atentos ao enfrentamento de disparidades raciais.
A decisão só reforça a importância e a urgência de aprovação, no âmbito do Poder Legislativo, da PEC 27/2024, que inclui na Constituição Federal um capítulo inteiramente dedicado à promoção da igualdade racial e institui o Fundo Nacional de Reparação Econômica e de Promoção da Igualdade Racial, destinado ao financiamento de iniciativas voltadas à promoção da igualdade de oportunidades e à inclusão social de brasileiros pretos e pardos, exatamente como as que o STF ora determinou sejam adotadas pelo Estado brasileiro. O parecer favorável à PEC da Reparação, como ficou conhecida, foi aprovado em novembro pela Comissão Especial da Câmara dos Deputados constituída para examinar a proposta, que agora está apta a ser apreciada pelo plenário da Casa. A oportuna aprovação da PEC 27/2024 pelo Congresso Nacional viabilizará a criação de mecanismos para a efetiva destinação dos recursos necessários ao cumprimento dessa decisão do STF.
O reconhecimento jurídico do racismo estrutural pelo STF aliado a um dever de ação com efetiva responsabilização do Estado brasileiro revela mais uma decisão da Corte que vai além da retórica para conferir verdadeira concretude a diversos mandamentos da Constituição brasileira de 1988. Promulgadas há mais de 37 anos, tais normas precisam finalmente transpor a abstração simbólica do papel para se tornar realidade. O protagonismo da Corte nessa transformação tem sido crucial nos temas mais relevantes à nação, como é o enfrentamento ao racismo. Falamos aqui de protagonismo não em um sentido pejorativo ou de um suposto “ativismo” maléfico, senão de uma atuação intransigente da Corte na defesa da Constituição, papel, aliás, que lhe fora conferido pela própria Carta de 1988. Provocado para tanto, o STF vem oferecendo soluções efetivas a muitas das questões sociais mais caras ao país, o que só demonstra que (ainda) precisamos do Judiciário para realizar direitos fundamentais e mediar conflitos entre os demais Poderes. É, certamente, um diagnóstico ruim, embora comum a muitas democracias em consolidação mundo afora.
A esse propósito, é sempre bom lembrar que, no Brasil, salvo raríssimas exceções, o Judiciário age sempre sob provocação, e, quando instado a fazê-lo, tem o dever constitucional de decidir todas as ações e questões que lhe são endereçadas – daí porque a alcunha de “ativista” soa equivocada em nosso sistema jurídico. Com isso, diversos atores sociais legitimados a provocar a Corte nessas matérias, em especial representantes da sociedade civil organizada e partidos políticos – como foi o caso dessa ação, proposta por sete deles e articulada pela Coalizão Negra por Direitos, que congrega diversos movimentos sociais anti racistas – vêm de forma cada vez mais constante se utilizando desses mecanismos para instar o STF a agir como verdadeiro agente moderador dessas relações polarizadas, oferecendo soluções muitas vezes pautadas pelo simples diálogo entre o Legislativo e o Executivo, e, mais recentemente, também pela imposição de medidas concretas para sanar as violações à Constituição. Estamos aqui nos referindo, por exemplo, às recentes decisões do STF nos casos do sistema prisional, das favelas e dos descontos indevidos do INSS.
Cresce nesse cenário a adoção de meios autocompositivos de solução pelo STF, inclusive no curso de ações originalmente destinadas ao exame genérico e abstrato da compatibilidade de leis em face da Constituição. Sob a constatação de que nesses processos estruturais a mera declaração de inconstitucionalidade não basta, o STF vem assumindo o papel de impulsionar a transformação da realidade brasileira, ainda que não imune a críticas (quem, afinal, está isento a elas?). No caso do racismo estrutural, ganham, sem sombra de dúvidas, a Constituição e a sociedade brasileiras. É o anúncio, como entoava Drummond, de um novo ano como verdadeira promessa de esperança renovada. Vidas Negras Importam!
