A República blindada
Em artigo anterior, denominado O Banco Master e o Palácio de Espelhos, publicado neste mesmo espaço, falamos sobre o lugar onde fatos graves se tornam reflexos, versões, ângulos, e o cidadão anda em círculos sem saber onde está a porta. A semana seguinte mostrou que o problema não era apenas o labirinto. Era a fechadura.
O que vem depois do palácio não é a claridade. É uma sensação de blindagem institucional.
Toda República precisa de um gatilho interno de autoproteção, o nome correto disso é responsabilidade. Mas, quando esse gatilho deixa de operar como dever e passa a operar como proteção do próprio sistema, o que se preserva já não é o Estado, é o arranjo.
É aí que surge a “densidade movediça”: a medida que decide se um fato merece investigação ou se merece arquivamento antes mesmo de ser investigado. Em um dia, é suficiente para acionar a máquina estatal; no outro, se esvai como nuvem, apesar dos sinais objetivos de risco institucional.
O país já viu essa lógica operar como fogo: quando convém, uma faísca vira incêndio; quando não convém, é abafada antes de começar.
Há casos em que o próprio sistema admite, sem rodeios, que uma reportagem foi o estopim. Basta lembrar o Inquérito 3.736/PB, instaurado pela Polícia Federal “a partir de reportagem televisiva” que apontava indícios de irregularidades na aplicação de recursos federais em convênio firmado entre a União e a Prefeitura de João Pessoa, na Paraíba.
Há também procedimentos em que se diz, expressamente, que o ponto de partida foram reportagens baseadas em mensagens vazadas. É o caso da PET 10.543/DF, instaurada a partir de reportagens do Metrópoles que noticiaram conversas em grupo de WhatsApp em que empresários teriam passado a defender abertamente um golpe de Estado, a depender do resultado das eleições de 2022, com ataques ao STF, ao TSE e às urnas eletrônicas.
Em outras palavras: quando o Estado quer, matéria jornalística funciona como notícia de fato. Afinal, investigar não é condenar; é testar a hipótese, inclusive para descartá-la com segurança.
Então chegamos ao que interessa.
No episódio do Banco Master, o pedido de investigação foi arquivado pela Procuradoria-Geral da República com duas chaves que merecem ser expostas com nitidez. O primeiro argumento foi o de que o contrato de R$ 129 milhões, firmado entre o banco e o escritório de advocacia liderado pela esposa de um ministro do Supremo, em si, não revelaria ilicitude “a priori” e estaria no campo de negócios jurídicos entre particulares, sob a autonomia da advocacia. O segundo argumento foi o de que o noticiário, que relatou contatos do próprio ministro com o presidente do Banco Central para tratar de assuntos do Banco Master, inclusive a informação de múltiplas ligações e encontros, não teria “densidade suficiente” para mobilizar o aparato da PGR; e que a apuração esbarraria, ainda, no sigilo constitucional da fonte.
É aqui que a República perde o fio.
Porque, se a imprensa pode ter densidade para abrir investigação, não pode virar “falta de densidade” apenas quando o assunto toca o topo. Sigilo da fonte é garantia civilizatória, mas não é sinônimo de imunidade investigativa. Ele não impede diligências objetivas em torno de fatos verificáveis fora da fonte: documentos, agendas oficiais, registros formais de audiências, logs institucionais, quebra de sigilos telefônicos, metadados de localização georreferenciadas, termos de reunião, tramitação regulatória, rastros administrativos. O sigilo protege a fonte, o que não elimina o dever de transparência quando o assunto é confiança pública.
De outro lado, o contrato de R$ 129 milhões não precisa ser “ilícito” para ser institucionalmente tóxico. A pergunta republicana elementar não é se a contratação, em si, “é crime”. A pergunta é: isso é compatível com a aparência de independência? É compatível com os serviços advocatícios efetivamente prestados? É compatível com eventuais reuniões fora de agenda entre o ministro, cuja esposa defendia interesses do banco, e o presidente do Banco Central? Quando a régua limita prematuramente o penal e ignora o conflito de interesses como fato político-institucional, a sensação de blindagem já começou.
Agora coloque isso ao lado de outro arquivamento recente, também ligado a notícias e vazamentos. Em agosto de 2024, a PGR arquivou a notícia-crime que pedia apuração sobre o uso de estruturas e relatórios ligados ao TSE em procedimentos do STF. Ali, a linha central era a suspeita de relatórios produzidos a partir de pedidos informais do gabinete do relator no Supremo e depois apresentados como se fossem de origem “espontânea”, com impacto potencial sobre medidas e decisões.
O detalhe revelador veio depois. Novas mensagens e novos elementos seguiram vindo a público e alimentando o debate sobre o que sugeriam, mas não se viu, ao menos publicamente, o mesmo ímpeto para reabrir o mérito. O que ganhou velocidade foi outra frente: a apuração do vazamento.
E é aí que a densidade muda de lugar. Aquilo que as mensagens apontavam – a hipótese de uso indevido de estruturas e relatórios – não passou do balcão. Já o vazamento dessas mensagens passou a gerar inquérito, diligências, indiciamento e ação penal. Não se trata de dizer que vazar seja irrelevante; sigilo funcional existe por uma razão. Trata-se de notar a assimetria: o sistema corre atrás de quem deixou a luz escapar, mas hesita diante do que a luz ilumina.
Aqui, o paralelo histórico é inevitável e didático.
Você, leitor, se lembra da Operação Satiagraha? Não se trata de recontá-la, mas de lembrar o ponto institucional: toda operação foi anulada porque consideraram ilegal a participação da ABIN na investigação, entendendo que esse tipo de uso de estrutura estatal fora do trilho contaminou o processo e suas provas. O Estado, ali, viu densidade suficiente para anular. Havia algo que, aos olhos do sistema, não podia ser tolerado.
Essa assimetria não é um acidente. E é aqui que o pós-Lava Jato entra como chave interpretativa, não como bandeira.
A Lava Jato escancarou mecanismos, promiscuidades e atalhos. E, depois dela, o poder reorganizou seus anticorpos: parte por correções legítimas, parte por autopreservação; parte por garantias necessárias, parte por uma cultura de neutralização. O resultado percebido, para o cidadão comum, não é um sistema que se higieniza, mas que se protege.
Indicações presidenciais, por exemplo, sempre existiram. O que mudou foi o ambiente e, com ele, o sentido dessas escolhas. No pós-Lava Jato, quando o sistema passou a operar em modo defensivo, cada nome para as cortes superiores e para órgãos de controle deixou de ser apenas um currículo, virou um sinal. A Constituição não mudou; a mensagem mudou. E, quando essa mensagem parece ser “reduzir risco”, a confiança pública sente antes que o Direito explique.
A toga não perde autoridade por errar, mas por parecer incapaz de aplicar a mesma régua quando o risco é interno.
E aí a República vira um mecanismo de autossalvamento: investiga quando convém; denuncia quando convém, arquiva quando convém; acelera quando convém; desacelera quando convém, condena quando convém, absolve quando convém, anula quando convém. Não é um complô cinematográfico, é um padrão. E padrões não precisam de sala secreta, apenas de repetição.
Se isso é República, já não é aquela que nos prometeram. É outra coisa. E o nome dessa outra coisa, cada um dará o seu, porque o texto, aqui, não precisa acusar. Basta colocar o leitor diante do espelho e deixar que ele conclua sozinho, se é que ainda exista luz para enxergar.
