El Salvador: o paradoxo de uma paz custosa e a ascensão da corrupção
El Salvador, sob a liderança do presidente Nayib Bukele, apresenta-se ao mundo como um paradoxo contemporâneo. De um lado, a nação celebra uma redução histórica e inegável nos índices de criminalidade violenta, um feito que trouxe um alívio palpável para uma população há décadas aterrorizada pelas gangues. De outro, emerge um cenário preocupante de erosão democrática acelerada e um aprofundamento da corrupção sistêmica, que parece prosperar sob o manto da “guerra às gangues”.
Essa política de “guerra às gangues”, implementada com mão de ferro por Bukele, transformou El Salvador. Medidas como o regime de exceção, que suspendeu garantias constitucionais e permitiu prisões em massa, resultaram na detenção de dezenas de milhares de pessoas e na desarticulação de estruturas criminosas que antes controlavam vastas porções do território. A queda vertiginosa nos homicídios e extorsões é um testemunho do sucesso aparente dessa estratégia, gerando um apoio popular massivo e uma sensação de segurança inédita para muitos salvadorenhos.
Contudo, essa ordem recém-estabelecida tem um custo elevado, que se manifesta no enfraquecimento das instituições democráticas e na concentração de poder nas mãos do Executivo. A narrativa de pacificação, embora sedutora, esconde uma realidade em que os freios e contrapesos são sistematicamente desmantelados, abrindo caminho para a impunidade e a corrupção em esferas mais elevadas do poder.
Para compreender a dimensão desse problema, é fundamental recorrer a organizações como a Transparência Internacional. Esta entidade global, dedicada ao combate à corrupção e à promoção da transparência, publica anualmente o Índice de Percepção da Corrupção (IPC), uma ferramenta crucial que avalia os níveis percebidos de corrupção no setor público de diversos países. O IPC, que varia de 0 (altamente corrupto) a 100 (muito limpo), reflete a percepção de especialistas e empresários sobre a integridade de um governo.
Os dados da Transparência Internacional para El Salvador são alarmantes e revelam uma trajetória descendente consistente desde a ascensão de Bukele ao poder. Em 2019, o país registrava 38 pontos no IPC. Em 2020, caiu para 36. A deterioração continuou em 2021, com 34 pontos, e em 2022, atingiu 33. O ano de 2023 consolidou essa tendência preocupante, com El Salvador marcando apenas 31 pontos, indicando uma percepção crescente e acentuada de corrupção no setor público.
Essa percepção não é infundada. A pandemia de COVID-19, por exemplo, expôs uma série de irregularidades que levantaram sérias questões sobre a probidade do governo. Relatos de compras de equipamentos médicos de empresas sem experiência no setor, algumas delas ligadas a funcionários do governo, geraram escândalos. Materiais inadequados, como botas de borracha e máscaras de solado de sapato, foram adquiridos a preços superfaturados, desviando recursos essenciais em um momento de crise sanitária.
A construção do Hospital El Salvador, uma obra emblemática para o combate à pandemia, também foi alvo de controvérsias. A falta de transparência nos contratos, os custos inflacionados e a ausência de licitações adequadas sugeriram um ambiente propício para a malversação de fundos públicos, reforçando a percepção de que a emergência sanitária foi utilizada como pretexto para desvios.
Paralelamente, o governo de Bukele tem atuado de forma decisiva para desmantelar os freios e contrapesos que são pilares de qualquer democracia. Em maio de 2021, a Assembleia Legislativa, dominada por aliados do presidente, destituiu sumariamente os cinco juízes da Sala Constitucional da Suprema Corte e o Procurador-Geral da República, substituindo-os por figuras leais ao Executivo. Essa manobra concentrou o poder de forma inédita, eliminando qualquer possibilidade de escrutínio judicial independente sobre as ações do governo.
Outro golpe significativo contra a transparência e a luta anticorrupção foi a expulsão da Comissão Internacional contra a Impunidade em El Salvador (CICIES) em 2021. Criada com o apoio da Organização dos Estados Americanos (OEA), a CICIES tinha como missão investigar redes de corrupção e fortalecer as instituições. Sua saída forçada, justamente quando começava a investigar casos envolvendo membros do governo, foi um claro sinal de que a fiscalização externa não seria tolerada.
A crítica e a liberdade de imprensa também têm sido alvos de retaliações. Jornalistas investigativos e ativistas da sociedade civil que ousaram questionar as políticas governamentais ou expor casos de corrupção foram sistematicamente atacados e, em alguns casos, monitorados. O uso do software de espionagem Pegasus contra jornalistas, conforme revelado por investigações internacionais, demonstra a disposição do governo em silenciar vozes dissidentes e controlar a narrativa, criando um ambiente de medo e autocensura.
A tese central que emerge desse cenário é a de uma justiça seletiva. O aparato estatal, com sua força e recursos, foi direcionado de forma implacável e eficaz contra a “criminalidade violenta” das ruas, personificada nas gangues. Essa ação, embora popular, contrasta drasticamente com a crescente impunidade da “criminalidade de colarinho branco”, praticada por agentes públicos e protegida pela cooptação das instituições. Enquanto as prisões se enchem de membros de gangues, os esquemas de corrupção em esferas governamentais parecem operar com pouca ou nenhuma fiscalização.
Essa dualidade ressoa de forma particular no Brasil, onde o modelo salvadorenho encontra eco e admiração em setores da extrema-direita. Representantes desse espectro político frequentemente elogiam a “mão pesada” de Bukele e a drástica redução da criminalidade, vendo-o como um exemplo a ser seguido. Essa admiração reflete um anseio por soluções simplistas e punitivistas para a segurança pública, que, historicamente, no Brasil, priorizou o combate ao crime comum e à criminalidade de classes mais baixas, enquanto foi negligente, salvo raras exceções, com os delitos de colarinho branco e a corrupção das elites.
Em suma, o “modelo Bukele”, embora tenha entregado resultados notáveis na segurança pública, representa um perigoso “pacto faustiano”. A segurança é trocada pela democracia, pela transparência e pelo Estado de Direito. Ao desmantelar os mecanismos de controle e silenciar a crítica, El Salvador cria um ambiente fértil não para a erradicação total da criminalidade, mas para a ascensão de uma forma mais sofisticada e entrincheirada de criminalidade: aquela que se aninha no poder, protegida pela impunidade e pela ausência de fiscalização. O paradoxo de El Salvador é um alerta global sobre os perigos de sacrificar a integridade institucional em nome de uma paz que é, em sua essência, profundamente corrupta.
