Desembargador adotou padrão ‘smurfing’ para lavar dinheiro de propina 41 vezes, diz PGR
O desembargador Ivo de Almeida, do Tribunal de Justiça de São Paulo, alvo da Operação Churrascada, adotou o padrão smurfing para supostamente lavar dinheiro de propinas que teria recebido em troca de venda de sentenças. A Procuradoria-Geral da República imputa a Ivo 41 atos de lavagem. Sua defesa diz que a acusação é ‘rematado absurdo’.

O smurfing é uma estratégia usada para disfarçar propinas, segundo a Procuradoria. Consiste na divisão de grandes quantias de dinheiro em pequenas operações bancárias para dificultar o pente fino dos órgãos de inteligência financeira.
O smurfing do desembargador é detalhado na denúncia da PGR que acusa Ivo por crimes de corrupção passiva, advocacia administrativa, associação criminosa e lavagem de dinheiro. O desembargador está afastado das funções desde outubro do ano passado.
Nesta quarta, 18, os ministros da Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade, decidiram manter Ivo distante da toga até o julgamento do recebimento da denúncia.

Outros quatro investigados na Operação Churrascada foram também denunciados, inclusive um filho do magistrado, Ivo de Almeida Júnior.
No capítulo em que atribui ao desembargador um rol de 41 atos de lavagem de dinheiro, a Procuradoria chama a atenção para o método smurfing que ele teria empregado para ‘fracionamento de depósitos de dinheiro em espécie com o objetivo de ocultar a origem e a movimentação dos recursos’.
A investigação foi batizada Operação Churrascada depois que os agentes da Polícia Federal tiveram acesso a diálogos de supostos intermediários de compra de sentenças. Eles usavam senhas como ‘picanha’, ‘carnes’, para se referir aos fins de semana em que o desembargador estaria no plantão do TJ.
Quando a Operação Churrascada foi deflagrada, em junho de 2024, por ordem do ministro Og Fernandes, do Superior Tribunal de Justiça, a PF fez buscas no gabinete e na residência do desembargador, de 66 anos, então exercendo a presidência da 1.ª Câmara de Direito Criminal do Tribunal de Justiça.
Os agentes apreenderam na casa do magistrado R$ 170 mil em dinheiro vivo, ‘valor cuja origem não foi devidamente justificada’.
“Trata-se de outro indicativo da prática sistemática de corrupção como crime antecedente de lavagem de dinheiro”, afirma a Procuradoria. “Esse expediente de manutenção de dinheiro em espécie sob seu poder, com gradual incorporação às contas bancárias, mediante depósito fracionado, tem inequívoco fim de promover a lavagem do produto do crime antecedente.”

A denúncia é baseada no inquérito da Polícia Federal, dirigido pelo delegado André Luiz Barbieri, que atua no setor de combate à corrupção. Barbieri e quatro agentes federais foram arrolados como testemunhas da acusação. Para a defesa esse ponto significa que ‘não existe nenhuma prova de venda de sentenças, vez que a Procuradoria não listou como testemunha nenhum suposto beneficiário dessa prática, até porque tais fatos não existiram’.
A PGR cita quatro processos em que as decisões de Ivo teriam sido compradas. Segundo a investigação, processos criminais eram direcionados ao gabinete do desembargador por meio de fraudes no sistema de distribuição do Tribunal de Justiça de São Paulo.
A distribuição de processos entre os gabinetes é feita por sorteio. Para burlar os procedimentos, diz a denúncia, números de ações judiciais inexistentes eram registrados nos sistemas do TJ e, com isso, era possível simular a prevenção do desembargador para despachar nos casos em que a decisão já estava acertada.
A Procuradoria mapeou períodos em que o desembargador teria promovido dissimulação e ocultação de valores de origem ilícita – dezembro de 2019; entre os meses de janeiro a abril, junho a agosto e novembro de 2020; entre os meses de fevereiro a abril e de julho a dezembro, de 2021; entre os meses de janeiro a maio e no mês de julho de 2022.
Em 147 páginas, a subprocuradora-geral da República Luiza Cristina Frischeisen, que subscreve a denúncia, detalha uma rotina de crimes em série, os quais atribui a Ivo de Almeida.
“De modo consciente e voluntário, (o desembargador) ocultou a origem e a movimentação de R$ 182.440.00, valor oriundo da prática dos crimes antecedentes de associação criminosa, corrupção ativa e corrupção passiva, incorrendo em 24 atos de lavagem de dinheiro, realizando movimentações exclusivas de dinheiro em espécie, evitando-se a utilização de outras estruturas do sistema financeiro que permitiriam a identificação da origem dos recursos e promovendo sistematicamente o fracionamento de depósitos, para que as movimentações não fossem notificadas aos órgãos de inteligência financeira.”
Em outra série de operações, Ivo também teria ocultado a origem e a movimentação de R$ 121.350,00, ‘valor oriundo da prática dos crimes antecedentes de associação criminosa, corrupção ativa e corrupção passiva, incorrendo em 17 atos de lavagem de dinheiro, realizando movimentações exclusivas de dinheiro em espécie’.
A denúncia se reporta a uma Informação de Polícia Judiciária, documento que aponta que Ivo de Almeida movimentou, por meio de três contas correntes de sua titularidade, no período de 25 de fevereiro de 2016 e 19 de fevereiro de 2022, a quantia de R$ 703.123,60, a título de depósitos em espécie.
Desse montante, R$ 641 mil foram creditados em 548 operações, enquanto R$ 62.123,60 foram debitados em 15 operações. Apenas uma transação em espécie excedeu o valor de R$ 10 mil, consistindo em um saque de R$ 10.494,24, ocorrido em 25 de fevereiro de 2016.
Segundo a denúncia, ‘para além do direcionamento de procedimentos a Ivo de Almeida e das frequentes negociações envolvendo a “venda” de decisões judiciais, a associação criminosa se estruturou para a movimentação dos valores ilícitos por meio de pessoas jurídicas controladas pelo desembargador que, no entanto, nunca figurava nos respectivos quadros societários’.
A Procuradoria destaca duas sociedades empresárias ‘com grande relevância para o recebimento dos valores de corrupção sem que se deixassem rastros que os pudessem ligar ao desembargador’ – o Auto Posto Novo Oriental I Ltda e a Citron Residence I SPE Ltda.
Nesse ponto, a acusação inclui outro personagem da trama que se teria instalado no tribunal: Valmi Lacerda Sampaio, já falecido, que segundo a PF era o braço-direito do magistrado em negociatas. O enteado de Valmi, Wilson Vital de Menezes Júnior, também acusado na Churrascada, teria assumido a função de comercializar as decisões em nome de Ivo de Almeida.
“Nas contas bancárias associadas a ambas as sociedades empresárias, nota-se existir confusão de interesses patrimoniais entre Valmi e Ivo de Almeida e o recorrente fracionamento de depósitos de dinheiro em espécie, com o objetivo de impedir as comunicações obrigatórias aos órgãos de inteligência financeira do Brasil”, afirma a subprocuradora-geral da República.
Segundo ela, ‘como se sabe, a movimentação de valores em espécie inviabiliza a identificação de origem dos recursos e quebra a cadeia de rastreabilidade financeira, consistindo em expediente corriqueiro no pagamento de propinas e para lavagem de dinheiro’.
“Assim, a associação criminosa identificada estruturou o funcionamento dessas pessoas jurídicas justamente com a finalidade de viabilizar o pagamento de propinas, sem possibilidade de rastreamento e para a prática reiterada de lavagem de dinheiro”, crava a acusação.
A quebra do sigilo bancário indicou que as contas correntes de titularidade do posto de combustíveis ‘eram utilizadas para lavagem de dinheiro e circulação de valores de origem espúria’.
Em período inferior a um ano, entre 3 de outubro de 2019 e 24 de setembro de 2020, a pessoa jurídica com a qual Ivo teria ligação, recebeu depósitos em espécie na monta de R$ 675.640,35, sempre com ‘depositante não identificado’.
A Procuradoria descarta ‘absolutamente a hipótese de se tratar de depósitos do fluxo de caixa do próprio posto’. As transações foram fracionadas em 789 créditos, o que daria a média de três depósitos por dia útil.
“Em verdade, o que se verifica é que o excessivo fracionamento dos depósitos se materializava como a tipologia de lavagem denominada ‘smurfing’, empregada com o objetivo de evitar a materialização de hipóteses de comunicação obrigatória aos órgãos de inteligência financeira”, pontua a subprocuradora-geral Luiza Frischeisen.
A denúncia detalha transações em espécie do posto de combustíveis. “Esse padrão era reproduzido por integrantes da associação criminosa quando da movimentação de recursos financeiros por contas correntes vinculadas a pessoas naturais. Nesse sentido, embora desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo e, portanto, ostentando fontes de renda que não justificam a movimentação de dinheiro em espécie, Ivo de Almeida promovia sucessivos depósitos fracionados em suas contas em datas próximas a pagamentos de despesas elevadas, como, por exemplo, gastos com cartões de crédito.”
Entre 25 de fevereiro de 2016 e 19 de setembro de 2022, descreve a Procuradoria, o desembargador movimentou em suas contas pessoais R$ 703.123,60, em espécie, dentre os quais R$ 641 mil correspondem a créditos fracionados em 548 operações.
Segundo a denúncia, ‘a evidenciar o smurfing reiteradamente praticado pelo desembargador, com clara pretensão de ocultar a origem dos recursos movimentados, nota-se, exemplificativamente, que no dia 15 de janeiro de 2020, Ivo de Almeida compensou o débito de cartão de crédito na monta de R$ 12.607,54 com depósitos de dinheiro em espécie, fracionando as movimentações para mantê-las abaixo do patamar de comunicação obrigatória e evitar atividade de fiscalização da Unidade de Inteligência Financeira’.
Em outro trecho, a acusação pontua. “O mesmo comportamento foi adotado pelo denunciado nos meses de fevereiro, março, abril, junho, julho, agosto e novembro de 2020; janeiro, fevereiro, março, abril, julho, agosto, setembro, outubro, novembro e dezembro de 2021; janeiro, fevereiro, março, abril, maio e julho de 2022.”
“A movimentação de dinheiro em espécie entre os integrantes da associação criminosa e as pessoas jurídicas associadas segue um mesmo padrão, voltado a ocultar a origem ilícita dos recursos e a permitir a circulação dos valores oriundos das práticas de corrupção”, assinala Luiza Frischeisen.
A Procuradoria está convencida que a ‘associação criminosa praticou sistematicamente atos de corrupção entre os anos de 2016 e 2023, a exemplo dos diferentes episódios de negociação envolvendo as decisões judiciais de Ivo de Almeida’.
“Tais condutas ilícitas geraram, em favor dos envolvidos, um acúmulo considerável de dinheiro espécie, que o desembargador optou por não movimentar pelas vias ordinárias, com o desiderato de ocultar a origem espúria dos recursos”, crava Luiza Frischeisen.
A subprocuradora anota ainda. “Quando da incorporação de seu capital ilícito às suas contas bancárias, Ivo de Almeida se valia de uma das mais recorrentes técnicas de lavagem de dinheiro, o fracionamento de depósitos em espécie, que tem a finalidade primordial de evitar as comunicações obrigatórias aos órgãos de controle, conforme determinado pela Lei n. 9.613/98 e pelas Cartas Circulares do Banco Central do Brasil.”
Com larga experiência em ações criminais sobre corrupção e lavagem de capitais, Luiza afirma que, no caso do desembargador, ‘o fracionamento de depósitos prestava-se a ocultar a real origem dos valores, dada a inerente falta de rastreabilidade das fontes de dinheiro em espécie’.
Segundo ela, a estratégia empregada pelo desembargador mantinha dinheiro supostamente oriundo de propinas à margem das atividades de fiscalização antilavagem do Estado. Por esse expediente, Ivo de Almeida fez com que a movimentação dos recursos deixou de ser vista pela entidade bancária, detentora do dever de comunicação, em sua totalidade.
Luiza destaca que os bancos devem comunicar ao Conselho de Controle de Atividade Financeira (Coaf) operações de depósito em espécie que apresentem incompatibilidade com a atividade do cliente, ‘justamente o caso de Ivo de Almeida, servidor público que não possui fontes de renda que justifiquem a posse de dinheiro em espécie’.
O fracionamento de depósitos se prestava a ocultar a movimentação total, afastando-se a comunicação, segundo a PGR. “O propósito, claramente, era de ocultar o total da movimentação de valores provenientes de infrações penais perpetradas pela associação.”.
A Procuradoria sustenta que os depósitos foram ainda realizados em terminais de autoatendimento, ‘com a finalidade de evitar a identificação do depositante’. Na avaliação dos investigadores, trata-se de ‘mais um expediente apto a ocultar a origem dos valores’.
Para que não houvesse sobras financeiras em suas contas em patamar incompatível com seus rendimentos, diz a acusação, Ivo de Almeida mantinha os recursos em espécie em seu poder e os depositava conforme possuía gastos ordinários. “Assim procedeu individualmente os meses referidos, perfazendo-se, em cada um deles, a prática de um crime de lavagem de dinheiro pelo fracionamento de depósitos, em compensação aos seus gastos.”
A acusação destaca registros que totalizam o montante de R$ 182.440 por depósitos fracionados, sempre em compensação à saída de recursos, especialmente pelo pagamento de débitos em cartões de crédito.
COM A PALAVRA, O CRIMINALISTA ÁTILA MACHADO, QUE DEFENDE O DESEMBARGADOR IVO DE ALMEIDA
“A denúncia oferecida pelo Ministério Público Federal é um rematado absurdo. Restou sobejamente provado que nunca houve venda de sentença ou qualquer tipo de favorecimento por decisão judicial proferida pelo desembargador Ivo de Almeida. Inclusive, temos como prova cabal da inexistência de tais condutas o próprio rol de testemunhas que o Ministério Público Federal indicou: ninguém relacionado aos fatos imputados, apenas policiais federais que conduziram uma investigação absolutamente tendenciosa e que nunca presenciaram – até porque nunca existiram – tais fatos.”