30 de junho de 2025
Politica

Ramagem, o homem que a Câmara quis salvar, mandou espionar Lira e mais 23 deputados e 4 senadores

A leitura é penosa. Mas o catatau de 1.125 páginas produzido pelo delegado Daniel de Carvalho Nascimento, da Polícia Federal, deveria ser disponibilizado a todos os gabinetes da Câmara Federal. O relatório final do inquérito da Abin paralela retrata o que pode ser o mais grave ataque feito ao Congresso Nacional desde a redemocratização, em 1985.

O ex-diretor da Abin, Alexandre Ramagem, que dirigiu a agência quando 24 deputados e 4 senadores foram alvo de espionagem ilegal
O ex-diretor da Abin, Alexandre Ramagem, que dirigiu a agência quando 24 deputados e 4 senadores foram alvo de espionagem ilegal

Ao todo, 24 deputados federais, 4 senadores da República e seus assessores foram, segundo o delegado, espionados ilegalmente com o objetivo confesso de “caçar podres”, “buscar problemas na Justiça”, verificar “doações” e bisbilhotar até mesmo parentes e amigos. Da devassa descrita por Nascimento não escaparam nem mesmo dois presidentes da Casa: Rodrigo Maia e Arthur Lira.

De acordo com o delegado, a estratégia do esquema era coagir adversários do governo de Jair Bolsonaro. “A utilização do conhecimento sobre fatos sensíveis, incriminadores sobre indivíduos ou organizações para coagir com o intuito de atingir os objetivos é técnica utilizada na área de inteligência: kompromat”, escreveu o delegado.

Entre os alvos da Abin paralela estão seis dos 315 parlamentares que votaram pela suspensão da ação penal contra o homem apontado pela PF como o chefe, dentro da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), do esquema criminoso: o atual deputado federal Alexandre Ramagem (PL-RJ), que é citado 559 vezes no relatório. Até colegas de seu partido, como Gustavo Gayer (PL-CE), foram alvo dos arapongas da Abin.

O bolsonarista Gayer é um dos que votaram para tentar evitar que ação contra Ramagem por participar da tentativa de golpe em 2022 seguisse adiante no Supremo Tribunal Federal em 8 de maio – mais tarde, o STF decidiu manter a ação em relação aos crimes que teriam ocorrido antes do início do mandato do parlamentar, entre eles a acusação de tentativa de golpe.

Ramagem nega ter cometido os crimes. No dia 17 de junho, o deputado postou no X, ex-Twitter, um texto no qual criticou o indiciamento de Carlos Bolsonaro no caso. E afirmou: “A investigação da PF descambou. Revelou-se apenas criatividade endereçada à imprensa; vontade da Abin de não ter controle; uma PF desestruturando a inteligência de Estado”. Por fim, afirmou que se manifestaria após o relatório ficar público. Esta coluna procurou o deputado após concluir a leitura do relatório. Até agora, não obteve resposta.

Além de Gayer, o esquema teria espionado ilegalmente os deputados Ricardo Barros (PP-PR), para “aprofundar os pés de barros”, Evair de Melo (PP-ES), para “levantar tudo e achar os podres”, o deputado Arthur Lira, para “caçar podres”, e assessores dos deputados Bia Kicis (PL-DF) e Covatti Filho (PP-RS).

Todos votaram a favor de Ramagem para suspender a ação penal da qual ele é réu no STF sem saber que haviam sido vítimas do esquema da Abin paralela. A citação a Lira está na página 987. É ali que se fica sabendo, segundo a PF, que os subordinados de Ramagem fizeram uma caça aos supostos podres do deputado de Alagoas.

Entre os 143 votos contrários ao ex-diretor da Abin, havia sete deputados que foram espionados por Ramagem. São eles: Maria do Rosário (PT-RS), José Guimarães (PT-RS), Érika Kokay (PT-DF), Paulo Pimenta (PT-RS), Taliria Petrone (PSOL-RJ), Kim Kataguiri (União-SP) e Orlando Silva (PCdoB-SP). O 14º deputado é Gleisi Hoffmann (PT), atual ministra-chefe da Secretaria de Relações Institucionais da Presidência.

Ordem era 'caçar podres' de Arthur Lira , deputado que votou a favor de suspender processo contra Ramagem
Ordem era ‘caçar podres’ de Arthur Lira , deputado que votou a favor de suspender processo contra Ramagem

Parte dos petistas foi citada em razão da tentativa da Abin paralela de estabelecer uma ligação entre deputados do partido e a ONG Anjos da Liberdade, que seria financiada pelo Primeiro Comando da Capital (PCC) para promover uma campanha contra a portaria 157 do Ministério da Justiça, que proibira a visita íntima para presos do sistema prisional. Foi nessa trama que foram citadas as deputadas Érika Kokay, Taliria Petrone e Maria do Rosário. A ordem era demonstrar a ligação deles e do ministro do STF Alexandre de Moraes com os criminosos.

De acordo com o delegado da PF, os agentes da Abin responsáveis pelos monitoramentos de geolocalização de alvos, como a advogada Nicole Fabre, inclusive nas proximidades do STF, agiram “sem a devida autorização judicial e com o objetivo desvirtuado de atender a uma agenda político-ideológica no âmbito da ‘Operação Portaria 157′, em vez de apurar o suposto financiamento da ONG Anjos da Liberdade por organizações criminosas”. Ou seja, enquanto tentavam produzir provas contra os parlamentares, deixavam de investigar os criminosos do PCC.

Já Kim Kataguiri teria se tornado alvo da Abin paralela por seus embates contra a família Bolsonaro. De acordo com o delegado, até um doador de sua campanha para deputado, o advogado Walfrido Warde, foi alvo da espionagem ilegal, bem como assessores e integrantes do Movimento Brasil Livre (MBL), do qual o deputado é um dos fundadores.

O rol de parlamentares investigados durante a legislatura passada não para aí. Há ainda dez então deputados que não se reelegeram. São dois do PSB (João Campos, hoje prefeito de Recife, e Alessandro Molon), dois do PT (Marcelo Freixo e Leo Brito), um do PSOL (Jean Wyllys), dois do União (Luís Miranda e Rodrigo Maia), um do PDT (David Miranda), um do PSD (Marcelo Ramos) e um do PSDB (Joyce Hasselman).

O esquema ainda espionou quatro senadores: Humberto Costa (PT-PE), Renan Calheiros (MDB-AL), Randolfe Rodrigues (PT-AP) e Omar Aziz (PSD-AM). Os três últimos em razão da atuação dos parlamentares durante a CPI da Covid-19, que investigou denúncias de omissão do governo de Jair Bolsonaro durante a pandemia e de corrupção na compra de vacinas pelo Ministério da Saúde.

Abin paralela queria buscar
Abin paralela queria buscar “todos os podres” de castro e de sua mulher

Entre os alvos da chamada Abin paralela estão ainda três governadores – Wilson Witzel, Claudio Castro (ambos do Rio) e João Dória (São Paulo). No caso de Castro, a ordem dos para os agentes da Abin era para “buscar todos os podres” não só dele, mas também de sua mulher, Analine Costa de Castro e Silva. Até agora, o governador não se manifestou sobre Ramagem, cuja candidatura a prefeito do Rio em 2024 recebeu seu apoio apesar de o deputado chamar sua gestão de “medíocre” durante a campanha.

Por fim, a PF lista ainda 13 assessores parlamentares como alvos da chamada Abin paralela sem especificar necessariamente para quem trabalhavam, e um deputado estadual do PL, cujos antecedentes “ideológicos” foram investigados pelos homens da Ramagem. O parlamentar foi uma das 35 pessoas indiciadas pela PF no relatório final do inquérito.

A Abin paralela, segundo o delegado, foi uma estrutura criada na gestão de Ramagem na Abin durante o governo de Jair Bolsonaro. Ela teria sido usada não só para espionar parlamentares, mas também ministros do Supremo, juízes, policiais, jornalistas, advogados, militares (há um general da reserva entre os alvos detectados pela PF), sindicalistas, funcionários do Ibama e da Receita Federal que criavam embaraços para o governo Além disso, a estrutura teria propagado notícias falsas sobre as urnas eletrônicas.

Tudo dentro do contexto da suposta tentativa de golpe executada pelos bolsonaristas. Ela teria usado ainda o sistema First Mile, um software israelense que permitia aos agentes burlar a necessidade de autorização judicial para saber a localização dos celulares de desafetos do governo ou de pessoas que o esquema teria intenção de prejudicar. Comprado por R$ 5,7 milhões, o sistema foi usado entre 2019 e 2021 e espiou 60 mil telefones, muitos dos quais por razões político-partidárias para a defesa de interesses da família Bolsonaro e de seu grupo político.

Inicialmente, o sistema, adquirido em 2018 pela agência, tinha como objetivo ser usado para o combate a organizações criminosas no Rio, durante a intervenção federal na Segurança Pública do Estado, mas, segundo o delegado, não foi isso que aconteceu. Assim escreveu o policial:

O ministro Alexandre de Moraes foi alvo do esquema ao lado de deputadas petistas: queriam ligá-lo ao PCC
O ministro Alexandre de Moraes foi alvo do esquema ao lado de deputadas petistas: queriam ligá-lo ao PCC

”O desvirtuamento do emprego da ferramenta tecnológica foi revelado pelo monitoramento de cidadãos do espectro político, jornalistas, advogados e servidores públicos, atendendo a interesses exclusivos do doravante denominado Núcleo Político, desviando-se de sua suposta finalidade de auxiliar em operações de segurança em áreas de alta criminalidade“.

Ou seja, enquanto os agentes espionavam congressistas, o crime organizado era deixado em paz. Cabe agora, após o feriado de Corpus Christi, aos líderes do Congresso decidir o que devem fazer em relação a Ramagem, um colega, que segundo a PF, não teve dúvidas em usar a Abin para “caçar” os deputados. Será essa mesma Câmara que terá de decidir, caso o STF condene o deputado se agora será a vez do caçador de parlamentares ser cassado por seus pares.

 

 

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