15 de agosto de 2025
Politica

O teto furado do serviço público: por que precisamos de uma Comissão Salarial Externa

Você sabia que há juízes no Brasil que, entre 2017 e 2025, receberam mais de R$ 15 milhões em salários? Que, em 1.200 cidades, ao menos um dos três assalariados mais ricos é um magistrado ou procurador? Ou que mais de 4 mil deles ganharam, só em 2024, mais de R$ 1 milhão livres de impostos?

Esses números não são apenas escandalosos — eles revelam um Estado que, em vez de combater a desigualdade, a aprofunda. Enquanto em boa parte do mundo juízes iniciam suas carreiras ganhando o equivalente ao percentil 95 da renda nacional, no Brasil eles já começam no top 1%. E, com os chamados “penduricalhos” — adicionais por tempo de serviço (pagos em duplicidade), bônus, verbas indenizatórias — alguns chegam ao top 0,05%. Entre 66 países analisados, somos superados apenas por Singapura, um país muito menos complexo e desigual do que o nosso.

Por que permitimos que isso aconteça? Três fatores ajudam a explicar.

Primeiro, vivemos em uma sociedade profundamente desigual, onde a busca por distinção se torna um fim em si mesmo. Estudos mostram que, em contextos como o nosso, os mais privilegiados fazem de tudo para manter — e ampliar — sua distância dos demais, mesmo por meios antiéticos ou ilegais.

Segundo, essa lógica social guiada pelo status alimenta uma “corrida ao fundo do poço”: uma competição entre carreiras e tribunais por novos benefícios, sempre em nome da “isonomia”. Cada nova vantagem conquistada por uma categoria vira argumento para que outra exija o mesmo. O resultado é uma escalada de privilégios que dribla o teto constitucional.

Terceiro, há um grave conflito de interesses. Tribunais julgam benefícios que favorecem seus próprios membros. Conselhos como o CNJ, que deveriam coibir abusos, muitas vezes os legitimam. E congressistas preocupados com a questão e interessados em regular os excessos sentem o risco das estocadas da Espada de Dâmocles daqueles que têm o poder de abrir processos ou julgá-los.

Com isso, temos distorções e incentivos perversos: 1) juízes de primeira instância ganhando muito mais do que ministros do STF; 2) carreiras de “segundo escalão” tentando imitar os mecanismos criados pelas elites do funcionalismo, como bônus de produtividade e fundos especiais; 3) corporações intermediárias torcendo para que outras abram a porteira, legitimando a busca incessante por privilégios travestidos de direitos.

A solução não virá de pactos simbólicos ou leis que apenas mudem nomes de parcelas. Precisamos de uma mudança estrutural, a qual pode ser oportunizada a partir das discussões em curso no GT da Reforma Administrativa em desenvolvimento na Câmara. Por isso, propomos a criação de uma Comissão Salarial Externa (CSE) — um órgão autônomo como o Comitê de Política Monetária (COPOM), mas formado por especialistas independentes, e com duas funções principais:

  • Definir anualmente o teto remuneratório do setor público, com base em critérios de justiça distributiva.
  • Fiscalizar o cumprimento desse teto e aplicar sanções, similares às previstas na Lei de Responsabilidade Fiscal, a quem o violar.

A CSE atuaria como um anteparo técnico e social contra as pressões corporativas e políticas. Ela mitiga o risco de captura e desincentiva a competição por distinção entre carreiras. Para ganhar mais legitimidade, sua composição deve refletir a diversidade do país — com critérios de gênero, raça e território — e seus membros, que teriam mandatos fixos, não poderiam ter vínculos recentes com o setor público, partidos ou sindicatos.

Além disso, é preciso atrelar o teto a um referencial realista: a distribuição de renda da população. Antes de 1988, o teto era vinculado ao salário-mínimo — imperfeito, mas mais objetivo que o vácuo atual, que já permitiu salários acima de R$ 800 mil anuais.

Entendemos que ninguém, nem o presidente da República, deveria ganhar mais do que o top 1% ou 0,5% dos salários do país. E esse limite deve ser adequado às realidades regionais: com um (super)salário idêntico, um servidor pode estar no top 0,2% em São Paulo e no top 0,01% no Amapá. Isso é relevante, pois a psicologia social tem demonstrado que indivíduos que acumulam prestígio extremo em contextos desiguais podem sofrer enorme distorção em sua capacidade de juízo sobre o certo e o errado.

Vale a pena continuar a correr esse risco moral, ainda mais se esse status desmedido for conferido a servidores responsáveis por interpretar a lei e proteger o patrimônio público? Ofertar supersalários já seria controverso mesmo que o serviço público prestado tivesse níveis olímpicos de excelência. Infelizmente, sabemos que há muito a ser melhorado. Por exemplo, o Rule of Law Index, do World Justice Project, aponta que, dentre 142 países, apenas a Venezuela possui um sistema de justiça menos imparcial do que o nosso.

Por fim, o teto precisa ser efetivamente intransponível. Hoje, verbas indenizatórias e decisões judiciais sobre “exercícios anteriores” são usadas para burlar o limite. O teto deve incluir todos os ganhos — inclusive férias e gratificação natalina — e ser suficiente como pacote total e anual de remuneração, sem exceções.

A aplicação dos R$ 15 a 20 bilhões que poderiam ser economizados anualmente com o cumprimento efetivo do teto em áreas como educação infantil, assistência social ou saneamento básico traria retornos sociais muito mais significativos do que continuar transferindo renda para os servidores mais ricos da administração pública.

Em um momento tão marcado por pressões por contenção de gastos públicos, é difícil pensar em um consenso social mais evidente pela moderação das despesas do que o fim dos supersalários. É hora de um movimento plural alinhado a esse objetivo ganhar corpo.

Se queremos um Estado que sirva à sociedade, e não a si mesmo, precisamos de um teto que todos respeitem — inclusive os que hoje vivem acima das nuvens.

 

 

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