Moraes x juiz que pôs no semiaberto vândalo do 8 de Janeiro; entenda
Noticiou-se que o magistrado da Vara das Execuções Criminais da Comarca de Uberlândia/MG, responsável pela execução da sentença de um dos condenados pelos denominados atos de 8 de janeiro, mais precisamente Antônio Cláudio Alves Ferreira, que vandalizou o relógio histórico existente no Palácio do Planalto, deferiu sua progressão para o regime semiaberto.
Logo em seguida, assim que tomou conhecimento da decisão, o Ministro Alexandre de Moraes, relator do processo da condenação, cassou-a e determinou que o condenado retornasse ao regime fechado em razão de não ter o magistrado de primeiro grau competência para decidir sobre a concessão de benefícios aos condenados nos processos que tramitam perante a Excelsa Corte, além de não ter sido cumprido o requisito objetivo para a concessão da promoção de regime, no caso 25% da pena (condenado primário), por ter sido o delito cometido com o emprego de violência ou grave ameaça à pessoa, nos termos do artigo 112, inciso III, da Lei de Execução Penal.
A primeira questão que surge é se o magistrado de primeiro grau teria competência para conceder a progressão de regime pelo fato de o preso estar em estabelecimento prisional de sua responsabilidade.
O artigo 65 da Lei de Execução Penal regula a hipótese. Diz a regra: “A execução penal competirá ao Juiz indicado na lei local de organização judiciária e, na sua ausência, ao da sentença”.
A Lei de Execução Penal optou por centralizar o processo de execução em magistrado com poderes especiais a ser indicado na Lei de Organização Judiciária de cada Estado Federativo. Na ausência de legislação específica que verse sobre este tema, a competência para executar a sanção penal será do juiz que tiver prolatado a sentença.
É comum a transferência do preso para cumprir pena em outra cidade. Mesmo assim, a depender do indicado na Lei de Organização Judiciária, a competência continuará a ser do juízo originário. O ideal seria, nessa hipótese, se a transferência não for provisória, que o magistrado declinasse de sua competência e remetesse a execução para a comarca do local da prisão do sentenciado.
Os presos provisórios e os condenados pela Justiça Eleitoral ou Militar, que se encontrarem recolhidos em estabelecimento sujeito à jurisdição ordinária, terão como juízo competente o indicado na Lei de Organização Judiciária do Estado da Federação em que se situar a unidade prisional, ou, na sua ausência, o da sentença. É o que se depreende da interpretação do art. 2º da Lei de Execução Penal. Do mesmo modo, a competência para a apreciação dos recursos será do Tribunal daquele Estado, seja Estadual ou Federal, a depender da Justiça competente.
A Justiça Federal não é considerada especial. Cuida-se de justiça comum e, por isso, a ela também se aplica as disposições contidas na Lei de Execução Penal. Nos termos do art. 85 da Lei 5.010, de 30.05.1966, enquanto a União não possuir estabelecimentos penais, a custódia de presos à disposição da Justiça Federal e o cumprimento de penas por ela impostas dar-se-á nos Estados ou no Distrito Federal.
Quanto a essa hipótese, dispõe a Súmula 192 do Superior Tribunal de Justiça: “Compete ao juízo das execuções penais do estado a execução das penas impostas a sentenciados pela justiça federal, militar ou eleitoral, quando recolhidos a estabelecimentos sujeitos a administração estadual”.
Com efeito, o preso terá como juízo de execução competente, independentemente da justiça de origem de sua condenação, o responsável pela execução na unidade prisional onde se encontra recolhido.
Partindo-se desta lógica, o sujeito condenado pela Justiça Estadual, que se encontrar preso em unidade prisional federal, estará sujeito à competência do Juiz Federal responsável pela execução das penas naquele local.
No caso em comento, mesmo que o preso estivesse custodiado em unidade prisional de competência do magistrado de primeiro grau, não poderia ele, por questão de hierarquia entre as instâncias, apreciar pedidos de benefícios legais pelo fato de a condenação ter sido proferida pelo Supremo Tribunal Federal e, por isso, naquela Corte será processada a execução do julgado, com fundamento no artigo 65 da Lei de Execução Penal.
Muito embora as manchetes dos jornais estampassem que o preso fora solto, tal fato não ocorreu. Foi determinada pelo magistrado de primeiro grau a promoção para o regime semiaberto e, por isso, não se expediu alvará de soltura. Tão somente foi o preso transferido para regime menos rigoroso, sem que isso importe imediatamente sua colocação em liberdade, muito embora tenha direito a alguns benefícios típicos deste regime, como a possibilidade de estudo fora da unidade prisional e, a depender do entendimento do magistrado, até mesmo saídas temporárias e a possibilidade de trabalho externo em razão dos fatos terem sido cometidos antes da alteração das regras da saída temporária pela Lei nº 14.843, de 22 de abril de 2024, que a proibiu, permitindo, apenas, a frequência a curso supletivo profissionalizante e ensino médio ou superior.
Como essas novas regras são mistas (processo penal e penal), não podem retroagir em prejuízo do acusado ou condenado. Assim, as novas regras de saída temporária, que contém matéria penal e são prejudiciais ao preso, só serão aplicadas aos fatos praticados após a sua entrada em vigor em razão da irretroatividade da lei penal mais gravosa (art. 5º, XL, da CF).
E poderia o preso ter sido progredido de regime?
O art. 112 da LEP teve sua redação alterada para escalonar os prazos de cumprimento da pena para a progressão de regime prisional, modificando sensivelmente o sistema até então existente, que exigia o cumprimento de 1/6 da pena para os crimes comuns e 3/5 ou 2/5 para os delitos hediondos ou equiparados, a depender da reincidência, ou não, do sentenciado.
O dispositivo dispõe que a pena privativa de liberdade será executada em forma progressiva com a transferência para regime menos rigoroso, a ser determinada pelo juiz, quando o preso tiver cumprido o prazo objetivamente previsto no regime anterior e ostentar bom comportamento carcerário, comprovado pelo diretor do estabelecimento, respeitadas as normas que vedam a progressão. Exige, ainda, a norma, que a decisão seja sempre motivada e precedida de manifestação do Ministério Público e do defensor, observando que qualquer decisão judicial sempre será fundamentada, sob pena de nulidade (art. 93, IX, da CF).
Embora a lei tenha mantido o sistema progressivo, instituiu como requisitos para a progressão de regime apenas que o preso tenha cumprido certo prazo da pena no regime em que se encontra e que ostente bom comportamento carcerário, atestado pelo diretor do estabelecimento prisional.
No entanto, o bom comportamento é um dos elementos do mérito carcerário (requisito subjetivo), mas não o único. Não basta o bom comportamento carcerário para que o mérito se faça presente. Outros elementos devem ser analisados pelo juízo da execução penal, sendo necessária, muitas vezes, a realização de exame criminológico, notadamente para os crimes mais graves e para os condenados que possam colocar a sociedade em risco em razão do seu comportamento anterior (outras condenações) e carcerário (histórico de faltas disciplinares).
A Lei 13.964/2019 alterou a redação do art. 112 da LEP e estabeleceu prazos diferenciados para a progressão de regime, levando em consideração a hediondez do delito, seu resultado, ter sido cometido mediante violência ou grave ameaça, e a reincidência.
Além do bom comportamento carcerário do condenado, para que possa ser deferida a progressão, há necessidade do cumprimento do prazo estabelecido no dispositivo, que são:
I – 16% (dezesseis por cento) da pena, se o apenado for primário e o crime tiver sido cometido sem violência à pessoa ou grave ameaça;
II – 20% (vinte por cento) da pena, se o apenado for reincidente em crime cometido sem violência à pessoa ou grave ameaça;
III – 25% (vinte e cinco por cento) da pena, se o apenado for primário e o crime tiver sido cometido com violência à pessoa ou grave ameaça;
IV – 30% (trinta por cento) da pena, se o apenado for reincidente em crime cometido com violência à pessoa ou grave ameaça;
(…)
A maioria dos acusados pelos atos de 8 de janeiro foi condenada, além de outros, pelos crimes de abolição violenta do estado democrático (art. 359-L do CP) e golpe de estado (art. 359-M do CP), que têm como seus elementos constitutivos a violência à pessoa e a grave ameaça.
Destarte, o prazo para a progressão de regime para estes condenados é de 25% da pena (se primários), ou seja, o preso deverá cumprir ¼ da sua pena para que adquira o direito à progressão, que, dependerá, ainda, do mérito para o benefício (requisito subjetivo). No caso de preso reincidente em crime cometido com o emprego de violência à pessoa ou grave ameaça, o prazo para a progressão será de 30% da pena, além de ser merecedor do benefício.
E, de acordo com o noticiado pela imprensa, o preso em questão não havia, ainda, cumprido o requisito objetivo e, por isso, não teria direito à progressão de regime.
Com efeito, seja pela incompetência do magistrado de primeiro grau, seja pelo não cumprimento pelo condenado do requisito objetivo (não foi cumprido 25% da pena, mas apenas 16%), o pedido não poderia ter sido apreciado e muito menos deferido.
Houve usurpação da competência do Supremo Tribunal Federal, para onde o pedido deveria ter sido encaminhado, a fim de que fosse apreciado pelo Ministro Relator do processo da condenação, que passou a ser o responsável por sua execução.
Por requisição do Ministro Relator, o caso será apurado pela autoridade policial que oficia no âmbito da Excelsa Corte.
O delito que, em tese, pode ser imputado ao magistrado, é o previsto no 328, “caput”, do Código Penal, descrito como usurpação de função pública, que, não obstante divergência doutrinária e jurisprudencial, pode ser cometido por funcionário público que exerce uma função que não é sua.
Na hipótese, o funcionário público, como é o caso de um magistrado, pratica indevidamente atos de uma função pública que não é sua, pouco importando os motivos.
O autor do delito deve ter consciência de que o ato que está executando não é de sua atribuição, estando presente o dolo de usurpar. Incorrendo em erro quanto à possibilidade do exercício de uma função que não é sua, não haverá delito por exclusão do dolo (art. 20, caput, do CP). Não é admitida a figura culposa do delito, que estará consumado com a realização de um ato de ofício.
A pena para este delito, em sua forma simples, é de três meses a dois anos de detenção, além da multa. É, portanto, infração de pequeno potencial ofensivo, de competência do juizado especial criminal e passível de transação penal. Mesmo que seja oferecida a denúncia, é possível a suspensão condicional do processo. E, no caso de condenação, caberá a substituição da pena prisional por restritiva de direitos. Muito dificilmente será cumprida pena privativa de liberdade, exceto se se tratar de condenado reincidente ou se as circunstâncias judiciais lhe forem desfavoráveis.
Evidente que, além da esfera penal, será instaurada investigação disciplinar na Corregedoria Geral do Tribunal de Justiça de Minas Gerais para apuração de eventual falta funcional, haja vista a quebra da hierarquia das esferas judiciárias na decisão que invadiu a competência do Pretório Excelso.
Enfim, cuida-se de caso interessante e que será paradigma para outros pedidos semelhantes, que venham a ser feitos nas Varas das Execuções Criminais pelo Brasil afora.