Feliz na vida e na morte
A morte é bem negligenciada na rotina dos racionais. Portam-se como se fossem eternos. É raro preparar-se para ela, a única certeza. Somente em ocasiões especialíssimas, como a perda de um santo como o Papa Francisco, há lugar para a observação obsequiosa das pompas fúnebres e talvez espaço para pensar em como será a nossa hora.
Há profissões em que cuidar de sepultamento faz parte das obrigações. Assim a diplomacia. Ao falecer em Londres o Ministro Souza Correia, chefe da Legação do Brasil na Inglaterra, era Oliveira Lima o auxiliar mais graduado do extinto. Coube a ele a responsabilidade de promover-lhe o enterro, com a solenidade a que o morto tinha direito.
Houve-se com tal esmero, que Eduardo Prado, ao comentar o destino de Souza Correia, reconheceu que o Ministro fora feliz na vida, feliz na morte e feliz em ter quem o enterrasse com tanto apuro, com tanto carinho, esmerando-se em propiciar as honras devidas.
Celebrou-se a Missa de Requiem na Igreja dos Jesuítas, em Farma Street, ao som do órgão. Cada convidado oficial teve o seu lugar marcado na Capela-Mor. A solenidade fúnebre, sem ser aparatosa, teve um cunho de distinção à altura do posto exercido pelo finado.
Oliveira Lima foi muito cumprimentado por todos, principalmente pelo Mestre de Cerimônias do Foreign Office, que – com o sutil humour britânico, acrescentou aos elogios – “O senhor deve ter muita prática de enterrar chefes!”.
E Oliveira Lima, discreto, até constrangido, responde:
– “Este é o primeiro. E eu peço a Deus que seja o último…”
Discreto, aparentemente tímido, mas desabrido a criticar a política brasileira. Historiador que não se cansou de louvar João VI, seu amigo Alberto de Faria estranhava a severidade com que avaliava os homens públicos do presente.
Oliveira Lima explicou que escolhia os temas do momento e não poderia deixar de combater as atitudes que lhe pareciam néscias e perniciosas. E concluiu: – “Ao meu país, timbro em dizer verdades, sem indagar quem é ferido. E olhe que não digo todas, para não parecer destemperado. Muitas vezes me calo, mas nunca minto para escondê-las!”.
Já para escrever para jornais do exterior, procurava escolher temas gerais, em que pudesse se abstrair das incapacidades que frequentemente infelicitavam o governo brasileiro.
Esse brasileiro que tanto serviu à sua Pátria, era não só escritor, mas um leitor atualizado com tudo o que se publicasse e que pudesse acrescentar conhecimento à sua louvável erudição. Ao longo de suas peregrinações de diplomata, comprava livros em todos os países e conseguiu formar uma preciosa biblioteca. Milhares de livros de muitos idiomas e inúmeros assuntos, todos versando sobre assuntos de interesse universal, sobretudo História, Política, Sociologia, Filosofia, Antropologia e Diplomacia e produzidos pelos mais respeitados autores.
Esse valioso acervo, Oliveira Lima legou, em testamento, à Universidade Católica de Washington. Pareceu-lhe que seria esse o melhor destino da opulenta livraria de mais de quarenta mil volumes, todos luxuosamente encadernados em couro, a sua fortuna literária. Ela refletia não só a sua paixão literária, mas o seu apurado bom gosto, a sua infinita curiosidade e a sua vasta cultura.
Cuidou de elaborar um documento formalmente adequado, para que a sua vontade restasse clara aos cumpridores de seus últimos desejos. E acrescentou, à parte jurídica, uma recomendação importante, a ratificar o seu amor pelo livro e o seu respeito à biblioteca, traços os mais fortes de seu espírito predestinado.
Fez constar, expressamente, da carta testamentária: “Determino que meu corpo descanse onde ocorrer meu falecimento, sepultado ou cremado de preferência, se minha religião o não vedar, sendo adquirida uma concessão perpétua em campa rasa, a mais modesta possível, e não sendo em caso algum meus restos objeto de transporte post-mortem. Como epitáfio, escolho este somente: Aqui jaz um amigo dos livros – sem indicação de nome”.
Manuel de Oliveira Lima faleceu em Washington, em 24 de março de 1928, e sua vontade foi fielmente observada.