Gigantes também tropeçam
O tempo só tem feito Machado de Assis crescer. Redescoberto no planeta, é objeto de pesquisas, estudos, traduções e publicações. Atemporal, a cada momento se encontra em sua obra a singeleza da genialidade, o domínio a perscrutar o íntimo da alma dos chamados racionais.
Entretanto, a pessoa era humilde e singela figura de funcionário burocrata no Ministério da Viação do Império. Pardo, pobre, epiléptico e gago. Conta-se que em maio de 1883, ao conversar com Ferreira de Araújo, Machado de Assis quis comentar que o dr. João Cardoso de Menezes e Souza, o poeta que escrevera “Harpa Gemedora” e traduzira as fábulas de La Fontaine, fora agraciado pelo Imperador com o título de Barão.
E gago, atrapalhando-se no polissílabo: – “Barão de Paranapi…Paranapi…Paranapi…”
E Ferreira de Araújo, impaciente:
– “Acaba, homem!”.
Ao que Machado retruca, sorrindo:
– “É isso mesmo: Acaba…Paranapi…acaba. Barão de Paranapiacaba, terminou, bem confortado.
O autor de “Quincas Borba” era um homem simples, discreto, recatado. Quando escreveu “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, que surgiram inicialmente em capítulos na “Revista Brasileira”, de 1880, os críticos entenderam que ele evoluíra e alcançara a plena maturidade literária.
Nestor Vitor era um dos que procurava entender o salto qualitativo, na verdade o alcance do cimo da perfeição. Entendeu de perguntar ao próprio Machado, qual era a razão da mudança.
O romancista permaneceu longo período em silêncio. Ao responder, parecia ainda não convencido do que diria. E afirmou:
– “Não sei… Mas talvez viesse do seguinte: Brás Cubas, em grande parte, não foi escrito. Foi ditado à minha mulher. Foi ditado porque eu estava quase cego. Atacara-me uma moléstia dos olhos, que só depois de muito tratamento se foi”.
E mais não disse. Fechou-se em silêncio e apertou o passo.
Sua tranquilidade era constante, mesmo em situações que ensejariam reação destemperada. Foi o que aconteceu certa noite. Raramente saía de casa e, quando o fazia, era em companhia de sua mulher, Carolina, aquela mesma que receberia o soneto da saudade tão disseminado em nossa Pátria como exemplo de um genuíno amor.
Certa noite, foi jantar num dos restaurantes do centro do Rio. Quando lhe foi servida a sopa, notou, à tona da gordura, um longo fio de cabelo loiro.
Chamou o garçom: – “Ouça aqui!” e mostrou o prato. “Olhe, eu gosto de cabelo louro e da sopa, mas separado!”.
Quando ficou gravemente enfermo, ainda residindo na mesma casa de dois pavimentos da rua Cosme Velho, onde morrera Carolina, desceu para o térreo e passou a viver num quarto onde recebia apenas os mais chegados. Permanecia estendido numa larga poltrona almofadada, as pálpebras cerradas e os braços magros envoltos em espessa manta de lã.
Dias antes de falecer, seu amigo Alberto Carneiro de Mendonça procurou animá-lo: – “Como vai passando?”. E Machado de Assis, que em regra se reprimia, não conseguiu conter a confissão:
– “Mal… Muito mal…Vou morrer…”
– “Não diga isso” – replicou o amigo, a animá-lo.
Mas o enfermo respondeu e fez um gesto para abarcar o leve rumor de vozes em outros aposentos:
– “Escuta…Não conheces esse zunzum?”
E cerrando, fatigadamente, os olhos:
– “É de velório…”.
Quando lhe faltavam as forças, um dos amigos, sentindo que se aproximava a hora final, indagou:
– “Posso chamar um sacerdote?”
Machado acenou a cabeça em negativa. Com voz distante, já quase extinta, respondeu:
“Não quero…Não creio…Seria uma hipocrisia…”
Mais importante do que a graça da fé, deve ser a imensidão da bondade do Criador, a acreditar em Machado de Assis, cuja existência em nada contradiz a coerência cristã sintetizada na lição dos Evangelhos.
O Rio de Janeiro não sabia o que estava perdendo. Por iniciativa do Barão do Rio Branco, o Governo da República resolveu conferir a ele as honras de enterro oficial. O povo estranhou o cortejo solene. Quem morreu? E ao responderem -“Machado de Assis”, houve quem dissesse: – “Ah! Sei quem é: é o Major Assis, fiscal das loterias…”.
Sic transit gloria mundi…