Relação do governo Lula com Congresso mostra que temos um Executivo disfuncional
Esta coluna é uma resposta à entrevista concedida por meu amigo Sérgio Abranches ao Valor Econômico, na qual ele sustenta que o Legislativo esvaziou as funções do Executivo com as emendas impositivas e o fundo eleitoral, levando o Brasil a uma “enrascada de governabilidade”. Segundo ele, esse processo teria começado no governo Temer e se agravado com Bolsonaro, culminando em um Congresso “disfuncional”, dominado por interesses paroquiais e pela busca incessante da reeleição.
Gostaria de oferecer uma interpretação alternativa: se há algo disfuncional no presidencialismo multipartidário brasileiro atual, esse algo é o Executivo — não o Legislativo.

Para começar, há uma imprecisão histórica. A chamada “entrega do governo ao Congresso” não começou com Temer, mas com a própria presidente Dilma Rousseff, ao sancionar sem vetos a Emenda Constitucional (EC) 86, em março de 2015, tornando impositivas as emendas individuais. Bolsonaro, por sua vez, sancionou a EC 100, que estendeu a impositividade às emendas de bancada.
No entanto, essas restrições orçamentárias não impediram que Temer tivesse desempenho extraordinário no Legislativo: 93% de suas propostas foram aprovadas por sua base, segundo levantamento recente do Estadão. O mesmo vale para Bolsonaro, que, mesmo com uma coalizão minoritária de sobrevivência com o Centrão, teve taxa de sucesso de cerca de 90%. Vale salientar que ambos governos já operavam sob o impacto do fundo eleitoral, que supostamente aumentou a autonomia do parlamentar individual vis a vis o Executivo.
Em contraste, o governo Lula 3 registra uma taxa de apenas 72% — comparável apenas ao segundo mandato de Dilma. Isso indica que a origem das dificuldades de Lula no Legislativo não está nas regras orçamentárias, mas sim na incapacidade do Executivo de montar e gerir coalizões de forma eficaz.
Nem mesmo uma coalizão supermajoritária — com 68% das cadeiras na Câmara e 73% no Senado — e ideologicamente próxima à mediana do Congresso (só PL, Novo e PSDB estão fora da coalizão), tem sido suficiente para garantir maioria substantiva.
Além disso, é importante lembrar que a fragmentação partidária diminuiu consideravelmente após a reforma eleitoral de 2017. Durante os governos Temer e Bolsonaro, a Câmara contava com até 30 partidos (16,4 efetivos). Hoje, graças às federações partidárias, esse número caiu para 15 partidos (8 efetivos) — o menor desde 1994.
Ou seja, embora o Executivo enfrente hoje mais restrições com a impositividade das emendas, ele também é beneficiado por uma queda significativa na fragmentação partidária, o que, em tese, reduz os custos de coordenação política.
Sérgio sugere que o problema é institucional e que não há saída de curto prazo, a não ser por uma improvável “rearrumação partidária”. Mas essa interpretação confunde instituições com interesses. O presidencialismo multipartidário nunca foi vertebrado por ideologia, mas por sobrevivência eleitoral. Paradoxalmente, é justamente essa lógica paroquial — muitas vezes considerada disfuncional — que permite ao sistema funcionar. Se os partidos fossem ideológicos e coesos, montar e gerir coalizões seria ainda mais difícil.
No presidencialismo, especialmente em sistemas multipartidários, o Legislativo responde a incentivos locais e dispersos. Cabe ao Executivo agir com responsabilidade, oferecendo coordenação e liderança. Quando isso falha, o resultado inevitável é baixa governabilidade — como estamos vendo hoje.
Por fim, quanto à tese de que o Legislativo seria hipócrita por inflacionar gastos paroquiais enquanto cobra responsabilidade fiscal do Executivo, vale lembrar que desequilíbrios semelhantes ocorrem sob diferentes arranjos institucionais.
Os Estados Unidos, com voto distrital e intensa captura por interesses privados, são exemplo eloquente. E o Brasil, sob o mesmo desenho institucional atual, já produziu políticas de redistribuição com responsabilidade fiscal — notadamente durante os governos FHC e Temer.
Curiosamente, nesses momentos, foi o PT quem agiu de forma irresponsável no Legislativo, votando contra o Plano Real, a LRF, a renegociação da dívida dos Estados com a União e o Teto de Gastos. E nem por isso o legislativo era considerado disfuncional.
Em resumo: o Congresso não é disfuncional por ser fragmentado ou clientelista. Ele responde racionalmente aos incentivos que o sistema lhe oferece. Quem falha hoje é o Executivo, ao não saber jogar o jogo do presidencialismo de coalizão, mesmo diante das novas restrições.