5 de julho de 2025
Politica

Como as novas diretrizes anticorrupção dos EUA impactam no Brasil?

Em 5 de junho de 2025, o Departamento de Justiça dos Estados Unidos (DOJ) publicou um conjunto de novas diretrizes (“guidelines”) sobre a aplicação do Foreign Corrupt Practices Act (FCPA), legislação que, reflexamente, tem contribuído historicamente para o combate à corrupção não só no Brasil, mas em muitas jurisdições.

As diretrizes visam fornecer maior previsibilidade a empresas que operam sob jurisdição americana e foi recebido com grande atenção pela comunidade jurídica global, especialmente após a “pausa” nos casos anunciada no começo do governo Trump. Mais do que uma simples atualização de práticas investigativas, o texto reflete uma mudança estratégica mais ampla da política anticorrupção com implicações concretas para o cenário brasileiro.

Há uma ênfase na responsabilização de pessoas físicas, reforçando-se o uso de ferramentas legais como o RICO Act (Racketeer Influenced and Corrupt Organizations Act) para combater esquemas complexos de corrupção transnacional. Além disso, o compromisso com a cooperação internacional é reiterado, mas de forma pragmática, priorizando casos com impacto mais amplo ou com vínculos com redes de crime organizado.

A menção explícita ao uso do RICO é bastante relevante. É um mecanismo tradicionalmente associado ao combate à máfia e ao crime organizado doméstico nos EUA, agora adaptado para contextos internacionais. Ao empregar essa ferramenta no enforcement do FCPA, o DOJ sinaliza que está disposto a interpretar casos de corrupção não apenas como desvios administrativos, mas como engrenagens de esquemas criminosos de maior escala.

Esse enfoque é bem-vindo no Brasil, onde a relação entre corrupção e o crime organizado ainda é, em larga medida, subestimada. Situações como a dos portos, em especial a do porto do Rio de Janeiro, em que empresas de logística e operadores locais foram investigados por facilitar operações de contrabando em conluio com agentes públicos, demonstram a intersecção entre corrupção sistêmica e redes criminosas. Nestes cenários, o envolvimento de uma empresa com sede ou ativos nos Estados Unidos pode gerar investigações paralelas sob o FCPA e, agora, potencialmente, sob o RICO também.

As novas diretrizes oferecem um nítido exemplo de enforcement mais duro. Para o DOJ, empresas que ocultam pagamentos indevidos sob contratos falsos ou repasses a intermediários devem esperar uma resposta agressiva, com ênfase na responsabilização dos executivos envolvidos. Isso pode afetar diretamente práticas comuns em setores sensíveis no Brasil, como infraestrutura e óleo e gás, em que complexas cadeias de intermediação foram usadas no passado para justificar pagamentos suspeitos.

Por outro lado, as empresas brasileiras não devem interpretar as novas diretrizes como um afrouxamento nos controles tradicionais de compliance. O documento norte-americano claramente diminui o foco nos brindes e hospitalidades, reconhecendo que esses atos, isoladamente, raramente configuram corrupção punível. No entanto, no Brasil, a legislação e as orientações de órgãos como a Controladoria-Geral da União (CGU) permanecem rigorosas quanto a esses temas. O fato de um item não ser central para o enforcement do FCPA não significa que deixou de ser relevante no âmbito da Lei Anticorrupção brasileira (Lei nº 12.846/2013).

Esse descompasso gerará incertezas. Imagine uma multinacional com sede nos Estados Unidos e operação no Brasil que decida atualizar sua política global de compliance à luz das novas diretrizes americanas, flexibilizando os limites para hospitalidades. Isso criaria um risco real de não conformidade com a legislação brasileira, transmitindo uma mensagem ambígua aos stakeholders locais. Portanto, ainda que as diretrizes do DOJ representem um avanço, elas não devem ser copiadas de forma automática no Brasil sem uma tropicalização.

Outro ponto de potencial conflito está na responsabilização individual. O FCPA historicamente busca responsabilizar executivos, mas o faz dentro de um sistema de plea bargains e acordos com o DOJ. No Brasil, a responsabilização de pessoas físicas no âmbito administrativo ainda é limitada, embora venha se fortalecendo no Ministério Público, na CGU e no CADE. As novas diretrizes americanas podem intensificar a pressão por mudanças na responsabilização individual no Brasil, gerando tensões regulatórias, inclusive quanto ao devido processo legal.

Além do impacto técnico, há também um pano de fundo geopolítico que não pode ser ignorado. A intensificação do enforcement do FCPA ocorre num momento em que os Estados Unidos procuram reafirmar sua liderança global, especialmente frente ao avanço econômico da China em países do Sul Global. Em paralelo, autoridades americanas têm enfatizado que empresas chinesas estariam se beneficiando de práticas comerciais opacas para ganhar vantagem em mercados emergentes.

Nesse contexto, o Brasil pode se tornar palco de disputas indiretas entre essas potências, tendo em vista a infraestrutura ainda em expansão, a forte presença de empresas estatais e um sistema institucional relativamente aberto à cooperação internacional. Projetos com financiamento chinês ou parcerias sino-brasileiras em áreas estratégicas podem ser alvo de maior escrutínio por parte de autoridades americanas, sobretudo se envolverem empresas listadas em bolsas norte-americanas ou com atuação nos EUA.

Assim, as novas diretrizes do FCPA não devem ser lidas apenas como um manual de enforcement. Elas revelam uma estratégia mais ampla dos Estados Unidos para reposicionar sua influência global com base na governança e na integridade corporativa. Cabe ao Brasil, e especialmente às empresas aqui sediadas, entender esse movimento não como ameaça, mas como oportunidade para fortalecer práticas internas e alinhar-se aos padrões internacionais sem, no entanto, renunciar à soberania regulatória e da coerência com a legislação local.

Este texto reflete única e exclusivamente a opinião do(a) autor(a) e não representa a visão do Instituto Não Aceito Corrupção (Inac). Esta série é uma parceria entre o Blog do Fausto Macedo e o Instituto Não Aceito Corrupção. Os artigos têm publicação periódica

 

 

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