Franqueza perigosa
O escritor Manuel Ferreira Garcia Redondo (1854-1916), quando estudava em Coimbra, em viagem de trem do Porto para a sede da famosa Universidade, sentou-se ao lado de um senhor magro, o rosto picado por bexigas, óculos escuros, com quem conversou animadamente.
Veio à baila o romance “O retrato de Ricardina”, que havia sido lançado por Camilo Castelo Branco, e cujo exemplar Garcia Redondo trouxera para ler durante a viagem.
– “Que tal esse livro?”, perguntou-lhe um colega de assento.
E, de imediato, Garcia Redondo começou a criticar a obra. Apontou falhas flagrantes e veio a ser ajudado pelo senhor de óculos que começara a prestar atenção na conversa e logo entrou nela.
– “O senhor tem razão. De fato, o livro é ruim!”.
Passou a enumerar outros defeitos graves e depois o assunto se encaminhou por outras veredas.
Horas depois, ao descer na estação, Garcia Redondo não encontrou condução que o levasse ao seu destino.
O senhor, muito atencioso, fez-lhe um convite:
– “Eu tenho um carro à minha disposição. Venha comigo. Na cidade, se não lhe for incômodo, venha para a minha casa e jantamos juntos. Amanhã, com mais calma, o senhor retoma os seus afazeres”.
Garcia Redondo não se fez de rogado e aceitou a gentileza. Ao chegarem, viu que as pessoas acenavam para o seu benfeitor de forma efusiva e o saudavam:
– “Salve, Camilo! Que bom estares de volta!”.
O estudante ficou pasmo. Aterrorizado até. Seria ele o romancista Camilo Castelo Branco, alvo de tão ásperas críticas durante a viagem?
Daí a momentos, ao apresentar o estudante à roda de admiradores e amigos que se achava à sua espera, anunciou:
– “Apresento-lhes o meu crítico mais sincero, o qual é, ao mesmo tempo, um rapaz cheio de ideais e de boas ideias!”.
Garcia Redondo, confundido, encabulado, não sabia como desculpar-se. Mas Camilo desfez a sombra de embaraço, concordando mais uma vez com os seus reparos ao livro e afirmando-lhe que, na segunda edição, o romance seria melhorado.
Só então pousou a mão no ombro do jovem:
– “Agora, o que eu preciso é saber o seu nome”.
Ao ouvir que o estudante se chamava Garcia Redondo, pilheriou, sorrindo e abrindo os braços para abraçá-lo:
– “Redondo! Mas você é tão magrinho! É isso, os nomes são sempre paradoxais!”.
Garcia Redondo, além de ser precoce na crítica literária, era muito cônscio de seus direitos.
Ao descer na estação do Porto, foi solicitado a abrir a sua mala para que fosse examinada por um guarda aduaneiro.
Ao fim da revista, perguntou ao funcionário:
– “O senhor está satisfeito?”.
E o guarda:
– “Perfeitamente satisfeito”.
– “Pois eu não estou!”.
– “Não está, por que?”
E Garcia Redondo, aumentando o tom da voz e mostrando desagrado:
– “Acalme-se, meu amigo. Assim como o senhor, no seu dever de ofício, tem o direito de desconfiar de mim, revistando-me a mala, na presunção de que eu queria ou poderia roubar a Nação, eu tenho o direito de desconfiar do senhor, receando que queira ou possa roubar a mim!”.
E muito resoluto:
– “Portanto, tenha paciência. Agora sou eu que exijo que o senhor seja revistado”.
O guarda, fora de si, acabou por acatar e esvaziou os bolsos do paletó e da calça, resmungando, aflito:
– “Veja, veja, veja… Não tem nada de seu comigo!”.
E o estudante, após exibição do último objeto, já segurando a alça da mala, pronto para ir embora:
– “Agora estou satisfeito!”.
Teve sorte, Garcia Redondo, por encontrar um funcionário que não exorbitou em violência verbal ou física. Hoje, a síndrome de “pequena autoridade” produz uma coleção infinita de episódios bizarros e de mau gosto. O “sabe com quem está falando” é uma instituição erradicável dos costumes burocráticos e isso não acontece apenas no Brasil. Sinal do embrutecimento dos tempos turvos que nos são dados viver.
Pregar o valor da gentileza, da polidez, dos bons modos, é missão que não rende frutos. A contaminação do vírus da rudeza, da grosseria e da rispidez é rápida e não respeita idade, raça ou origem.