O funcionamento do Coaf entre mitos jurídicos e a jurisprudência do STF
1. Introdução: a arte de negar o óbvio
Há algo de kafkiano na insistência em negar o que o Supremo Tribunal Federal decidiu no julgamento do RE 1.055.941/SP, em sistemática de repercussão geral. É como se, diante de um elefante na sala, alguns preferissem discutir se o que veem é realmente um paquiderme ou apenas uma ilusão de ótica particularmente convincente.
O fenômeno se repete com frequência nas páginas de revistas jurídicas: artigos que, com notável criatividade hermenêutica, sustentam que o STF não teria autorizado o compartilhamento de Relatórios de Inteligência Financeira (RIF) do COAF mediante solicitação do Ministério Público ou da polícia.
Como dizia um saudoso professor, “se todos os caminhos levam a Roma, há quem insista em dizer que chegou a Constantinopla”.
É hora de (re)colocar as placas de sinalização no devido lugar.
2. O Tema 990 e a clareza VY Canis Majoris do STF
O ministro Dias Toffoli, relator do RE 1.055.941/SP, foi bastante claro ao afirmar, naquele julgamento: “não há dúvidas, para mim, quanto a possibilidade de a UIF compartilhar relatórios de inteligência (RIF por intercâmbio) por solicitação do Ministério Público, da polícia ou de outras autoridades competentes.”[1]
Esta decisão privilegiou o modelo de inteligência financeira preventiva, reconhecendo que a atuação dos órgãos de controle, como a Receita Federal e o COAF, ao comunicar indícios de ilícitos penais aos órgãos de persecução, não ofende o direito fundamental ao sigilo bancário, desde que haja posterior controle jurisdicional
Durante o julgamento, foram apresentados dados eloquentes: nos três anos anteriores ao julgamento, o Ministério Público Federal havia recebido 1.165 RIFs após provocação do COAF, sendo 14 deles pela própria Procuradoria-Geral da República. Os ministérios públicos estaduais receberam 2.820 RIFs nas mesmas condições. A Polícia Federal, por sua vez, foi recordista com 3.221 relatórios.
Como observou o relator: “Que isso fique claro: todos esses números que foram ditos pela imprensa já foram disseminados. E a maior parte deles a requerimento das autoridades, e não de ofício pelo COAF”.
A maioria esmagadora da corte acompanhou esse entendimento. Não há dúvida alguma quanto a isso. Seria até injusto qualificar a conclusão do STF como algo dotado de “clareza solar” – expressão maior da cafonice redacional jurídica. Talvez seja mais apropriado invocar a clareza da gigante estrela Canis Majoris, com a dimensão de aproximadamente 1420 raios solares.
Apesar disso, num contexto em que nove ministros do STF dizem que A é B, sempre surge alguém para dizer que, na verdade, eles quiseram dizer que A é C, mas se esqueceram de mencionar. É o que se poderia chamar de “hermenêutica do contradito” – a arte de interpretar um texto dizendo exatamente o contrário do que ele afirma.
Especialmente no âmbito acadêmico, observa-se, por vezes, uma compreensão limitada de que o STF teria se restringido ao compartilhamento espontâneo das informações, sem ter se debruçado sobre a constitucionalidade do compartilhamento de relatórios produzidos a pedido do Ministério Público ou da polícia.[2] Essa interpretação, com todo o respeito, equivoca-se quanto à amplitude do debate travado e da ratio decidendi do Tema 990.
3. A anatomia de uma interpretação impossível
A tese de que o STF não teria apreciado “a requisição de RIF” padece de vícios insanáveis:
Primeiro, ignora solenemente o debate travado durante o julgamento. Os ministros discutiram expressamente a diferença entre “requisição” e “requerimento”, com o Procurador-Geral da República esclarecendo que, considerada a autonomia técnica do COAF – que segue recomendações internacionais –, o MP não faz requisições, mas sim requerimentos – “uma solicitação que pode ser, ou não, acolhida”.
Segundo, despreza a ratio decidendi do julgado, que estabeleceu claramente: “são lícitas as comunicações dirigidas pelas autoridades competentes à UIF, as quais não consistem em requisição, possuindo a UIF plena autonomia e independência para analisá-las, produzir – eventualmente – o RIF e disseminá-lo para as autoridades competentes”.
O Ministro Alexandre de Moraes, cujo voto foi aderido na fixação da tese, também defendeu a legitimidade do compartilhamento dos RIFs que são remetidos “de ofício ou pode ser pedido pela polícia ao Ministério Público”. Ele explicou que esses são “dados preexistentes, que o Coaf, agora UIF, possui”. A relevância desse ponto é que a UIF não “quebra” sigilo bancário ou fiscal; ela processa informações que já recebeu (como operações suspeitas comunicadas por instituições financeiras) e as dissemina. Essa distinção é crucial: a requisição direta vedada é a de dados sigilosos sem chancela judicial para acesso primário, não a solicitação de RIFs, que são produtos de inteligência.
É vital compreender que os Relatórios de Inteligência Financeira (RIFs) são, como insistentemente apontado no julgamento, “inteligência financeira, não evidência”. Eles se destinam a subsidiar investigações, e não a serem incorporados diretamente como prova em processos judiciais ou administrativos sem a devida validação e complementação probatória.
Terceiro, a tese de que o STF não teria apreciado “a requisição de RIF” contraria a própria lógica do sistema. Como explicou o ministro Alexandre de Moraes, existe uma “dupla atuação” da UIF: “não só espontaneamente, mas também em face de eventual pedido de órgão fiscalizador”. Em verdade, como esclarecido pelo próprio COAF na ocasião, qualquer solicitação encaminhada pelos órgãos de persecução penal somente será atendida se houver aderência às tipologias previamente estabelecidas com base em parâmetros técnicos. É por isso que as “requisições” recebem o mesmo tratamento de comunicações originárias de sujeitos obrigados, sendo bastante comum que retornem sem gerar relatório de inteligência.
De fato, à luz das recomendações do Grupo de Ação Financeira Internacional (GAFI/FATF), é relevante que a unidade de inteligência financeira de cada país (no Brasil, o COAF) seja capaz de gerar relatórios também a pedido das autoridades de persecução penal.[3] Negar essa possibilidade, ao arrepio do que foi decidido pelo STF, seria um desfavor aos compromissos internacionais assumidos pelo Brasil no combate à lavagem de dinheiro, corrupção e financiamento do terrorismo
Que fique, bem claro, portanto: é inegável que o Supremo Tribunal Federal, ao julgar o Tema 990, estabeleceu balizas claras e abrangentes para o compartilhamento de informações entre o COAF e os órgãos de persecução penal. A tese firmada, e a ratio decidendi que a fundamenta, contempla expressamente a possibilidade de que o compartilhamento de RIFs ocorra por solicitação da polícia ou do Ministério Público, sem a necessidade de prévia autorização judicial, desde que observados os requisitos de formalidade, sigilo e posterior controle jurisdicional.
4. As reclamações constitucionais como antídoto ao revisionismo
Para aqueles que ainda cultivam dúvidas, o STF tem sido didático. No julgamento da Rcl 61.944 AgR/PA, a Primeira Turma reafirmou: “No Tema 990/RG, o Supremo Tribunal Federal reconheceu constitucional o compartilhamento de Relatórios de Inteligência Financeira (RIF) entre o COAF e as autoridades de persecução penal sem necessidade de prévia autorização judicial, inclusive com a possibilidade de solicitação do material ao órgão de inteligência financeira”.[4]
Como bem pontuou o ministro Cristiano Zanin: “Os relatórios emitidos pelo COAF podem ser compartilhados espontaneamente ou por solicitação dos órgãos de persecução penal para fins criminais, independentemente de autorização judicial”.
Nesse julgamento, a tentativa de distinguishing feita pelo STJ no RHC 147.707/PA foi prontamente rechaçada. O ministro Zanin foi cirúrgico: “a redação do Tema 990/RG não permite essa interpretação”.
É possível concluir, assim, que qualquer entendimento em contrário ignora o extenso debate travado na Suprema Corte, as manifestações explícitas dos ministros relator e vogais, as razões que levaram à expansão do objeto do julgamento e, mais recentemente, as decisões em reclamações constitucionais que buscaram garantir a correta aplicação do Tema 990.
5. O preço da insegurança jurídica: déficit de eficiência no combate ao crime organizado
Enquanto nós, juristas, (re)debatemos incessantemente o tema, o Primeiro Comando da Capital (PCC) – uma das maiores organizações criminosas das Américas – continua lavando bilhões de reais através de esquemas cada vez mais sofisticados. Dados do Ministério Público indicam que a facção movimenta anualmente valores que superam o PIB de alguns países africanos.
Não se trata de folclore jurídico. É uma realidade que envolve postos de gasolina, empresas de transporte, imobiliárias, igrejas evangélicas de fachada, criptomoedas e até mesmo o mercado de capitais. São esquemas que dependem fundamentalmente da movimentação bancária para dissimular a origem ilícita dos recursos.[5]
Não quero, com essa argumentação, defender nenhum tipo de utilitarismo processual. Que fique bem claro: devido processo legal é sagrado, uma verdadeira metonímia do Estado de Direito, como já tive a oportunidade de escrever.[6] A questão é outra: é que o tema já foi insistentemente debatido no âmbito do STF, instância maior e responsável pela estabilidade da interpretação constitucional. É preciso reconhecer – e respeitar – os precedentes vinculantes de uma suprema corte.
Quando se cria insegurança jurídica sobre a possibilidade de compartilhamento de relatórios de inteligência pelo COAF, não estamos falando de mero preciosismo acadêmico. Estamos falando de dar tempo ao crime organizado para aperfeiçoar suas técnicas, apagar evidências e movimentar recursos para o exterior.
O COAF recebeu, apenas em 2018, 414.911 comunicações de operações suspeitas. Imagine-se o impacto de exigir autorização judicial prévia para cada solicitação de RIF pelo MP ou pela polícia. Seria criar um gargalo burocrático que, na prática, inviabilizaria o combate efetivo à lavagem de dinheiro.
Como bem observou o Procurador-Geral da República em memoriais ao julgamento do RE 1.055.941/SP, “Em vez de rápido e eficaz, o microssistema contaria com mais uma etapa procedimental, de natureza quase cartorária e de benefício duvidoso ao cidadão”.[7] E quem se beneficia dessa morosidade? Certamente não é o cidadão comum.
6. Conclusão: é hora de virar a página
Como ensina a melhor doutrina processual, a coisa julgada existe para conferir estabilidade às relações jurídicas. Quando o STF fixa uma tese em repercussão geral, não o faz para alimentar debates acadêmicos intermináveis sobre o que “realmente” quis dizer.
A insistência acadêmica em negar não é apenas um exercício de futurologia jurídica reversa. É, sobretudo, um desserviço à segurança jurídica e ao próprio sistema de precedentes vinculantes.
Talvez seja hora de vozes acadêmicas compreenderem que, quando o STF diz A, ele realmente quis dizer A – não B, C ou qualquer outra letra do alfabeto que melhor se ajuste às suas convicções pessoais. Afinal, como diria o poeta, “navegar é preciso, viver não é preciso”. No direito, interpretar é preciso, mas reinventar precedentes definitivamente não é.
[1] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 1.055.941/SP. Relator: Min. Dias Toffoli. Brasília, 04 de dezembro de 2019. Tema 990 da Repercussão Geral. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/. Acesso em: 10 jul. 2025.
[2] Por todos: “O busílis reside na interpretação equivocada que às vezes é emprestada ao Tema n° 990/RG, para ver nele abarcado, também, e com base na Lei n° 9.613/1998, a possibilidade de o Ministério Público (e quiçá até mesmo a polícia) requerer diretamente ao Coaf relatórios financeiros sem a autorização prévia do Judiciário” (ABBOUD, Georges. Acesso a dados financeiros sensíveis: Ministério Público e polícia têm medo do Judiciário? Disponível em: https://www.conjur.com.br/2025-jul-01/acesso-a-dados-financeiros-sensiveis-ministerio-publico-e-policia-tem-medo-do-judiciario/. Acesso em 10 jul. 2025).
[3] Cf. https://www.gov.br/coaf/pt-br/centrais-de-conteudo/publicacoes/publicacoes-do-coaf-1/as-recomendacoes-do-gafi-livro.pdf. Acesso em: 10 jul. 2025.
[4] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Agravo Regimental na Reclamação nº 61.944/PA. Relator: Min. Cristiano Zanin. Brasília, 02 de abril de 2024. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/. Acesso em: 10 jul. 2025.
[5] Nesse sentido, matéria do Estadão informa que o “PCC lava dinheiro em 13 setores da economia do País”. Disponível em: https://www.estadao.com.br/politica/marcelo-godoy/pcc-lava-dinheiro-em-13-setores-da-economia-do-pais-enquanto-o-governo-lula-atrasa-lei-antimafia/?srsltid=AfmBOopyrA3Tz5EB9mblhRgn2SNRTwDMXQu5OYprxSgiEKTvkjm__gsZ. Acesso em: 10 jul. 2025.
[6] LORDELO, João Paulo. Constitucionalismo digital e devido processo legal. 2. ed. São Paulo, Juspodivm, 2024.
[7] Disponível em: https://www.conjur.com.br/2019-nov-19/aras-stf-revogue-decisao-dados-coaf/. Acesso em: 10 jul. 2025.