PEC dos Precatórios: novo calote vem aí
Avança no Congresso uma proposta que reacende uma prática não tão nova: o calote institucionalizado. Trata-se da PEC nº 66, que visa alterar novamente as regras de pagamento de precatórios por estados e municípios — isto é, dívidas reconhecidas judicialmente, definitivas e sem possibilidade de recurso. O texto propõe um limite anual para o pagamento desses valores, criando um novo regime que favorece o adiamento das obrigações do poder público sob o pretexto de crise fiscal.
Para entender o cenário, é preciso voltar a 2021, quando o regime constitucional dos precatórios foi modificado pelas Emendas Constitucionais nº 113 e 114. Na ocasião, criou-se um novo sistema de pagamento que permitia o adiamento das dívidas judiciais, abrindo espaço fiscal para outras despesas públicas e instituindo um teto que impunha severas restrições ao cumprimento das obrigações por parte da União.
Essas mudanças, porém, foram julgadas inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal nas ADIs 7047 e 7064. O STF entendeu que limitar o pagamento de precatórios compromete o direito de crédito reconhecido judicialmente, violando a autoridade da coisa julgada e desrespeitando a separação entre os Poderes. Na prática, tratava-se de institucionalizar o inadimplemento do Poder Público, esvaziando os fundamentos do Estado de Direito.
Agora, por meio da PEC 66, tenta-se reeditar esse mesmo modelo nos âmbitos estadual e municipal. A proposta cria um escalonamento para os pagamentos, vinculando-os a percentuais da receita corrente líquida de cada ente federativo. Quanto mais endividado o ente, maior o prazo concedido para a quitação de seus débitos. Além disso, prevê a reabertura de prazo para adesão a parcelamentos de débitos previdenciários com o RGPS (Regime Geral de Previdência Social) e os regimes próprios de Previdência, o que pode agravar ainda mais o desequilíbrio fiscal.
A lógica da proposta é perversa: quanto pior a gestão e maior o descumprimento das obrigações financeiras, mais benesses são concedidas. A mora é premiada com prazos mais longos, perpetuando a ineficiência administrativa e incentivando o desrespeito à ordem judicial.
É necessário reconhecer que os entes públicos enfrentam dificuldades financeiras reais. No entanto, isso não justifica o desmonte de um sistema de garantias construído para assegurar a efetividade das decisões judiciais. A crise fiscal não suspende a Constituição, tampouco autoriza a relativização da coisa julgada.
Vale lembrar que os precatórios não nascem do acaso, assim como a crise fiscal não é uma fatalidade. Em grande parte, ela decorre de administrações irresponsáveis, que desrespeitam os limites impostos pela Lei de Responsabilidade Fiscal e adotam práticas que comprometem a saúde das contas públicas. Quando o Estado é condenado judicialmente, é porque cometeu um ilícito. Ignorar essa realidade é legitimar a violação de direitos por parte da própria Administração Pública.
Ao flexibilizar novamente o pagamento dessas dívidas, a PEC 66 não apenas frustra os credores — que são cidadãos, empresas, aposentados e servidores que venceram o Estado na Justiça —, como também estimula os entes públicos a não corrigirem seus déficits. Estabelece-se, assim, um modelo institucional que pune os corretos e protege os negligentes, em um ciclo vicioso que mina a credibilidade das instituições.
Ao fim e ao cabo, o que está em jogo não é apenas uma questão orçamentária. É a integridade do pacto constitucional, a autoridade do Judiciário e a confiança dos cidadãos de que o Estado será obrigado a cumprir a lei.