A língua do povo
A maledicência é um hábito universal. Existe em todos os ambientes. Hoje ganhou o espaço tecnológico, ocupando as redes e semeando sentimentos inferiores. Mas já ocorria em tempos idos, quando o mundo ainda não era digitalizado.
Houve época em que o exercício do diz-que-diz era até inocente. O poeta Raimundo Correia foi nomeado Promotor Público em São João da Barra. Já era nome feito nas letras brasileiras. No dia seguinte à sua chegada, o dono da casa em que se hospedara chamou-o reservadamente, para “dar alguns conselhos”.
– “Doutor, terra pequena é terra de intriga! O senhor mal chegou e já andam falando mal de sua pessoa!”.
– “Andam falando mal de mim?”
– “É!”, confirmou o outro. E tranquilizando-o: – “Felizmente, eu disse logo que era mentira, porque não acredito!”.
– “Mas o que é que dizem de mim?”
E o interlocutor, baixando a fala, misterioso, para ser ouvido apenas pelo recém-chegado:
– “Andam dizendo que o doutor é poeta!”.
Para combater a “fama de poeta”, o promotor público Raimundo Correia caprichava em suas peças, assim como fazia quando foi nomeado Juiz de Direito. Extremamente cuidadoso no exercício de suas atribuições, lavrava as suas sentenças após minucioso estudo e meditação.
Uma de suas decisões subiu, em grau de recurso, ao Supremo Tribunal Federal e o relator, Ministro Epitácio Pessoa, a reformou.
Ao se encontrar com o Ministro, o poeta não conteve a explosão de seu desagrado e fui exigir satisfações do reformador de sua sentença.
Com rispidez a Epitácio, que era mais político do que magistrado e chegara ao STF por suas ligações com o Presidente da República, Raimundo Correia não hesitou em dizer:
– “O senhor parece juiz de roça!”. E para mostrar um padrão de qualidade, acrescentou: – “O Pedro Lessa não julgaria desse modo!”.
Poeta, desabrido, era supersticioso e esquisito.
À procura de sustento, aceitava todas as nomeações que estivessem a seu alcance. Assim é que foi parar na diretoria de uma Secretaria do Governo de Minas Gerais, tendo de se mudar para Ouro Preto a fim de assumir o cargo.
Ouro Preto, então a capital mineira, era aquela cidade colonial, com ladeiras, muitas velhas igrejas, envolvida na pesada sombra da noite. Luz frágil e bruxuleante dos lampiões a querosene. O cenário assustou Raimundo.
Augusto de Lima, seu confrade e amigo, sabendo-o desambientado no pequeno hotel, fez questão de hospedá-lo em sua casa e lhe ofereceu o melhor aposento.
À noite, depois de muita conversa, recolheu-se o poeta já bem tarde. Dez minutos depois, no silêncio apenas cortado pelo cri-cri dos grilos, ei-lo a chamar por Augusto de Lima, para pedir-lhe outra moringa de água.
– “Receio ter muita sede durante a noite”, justificou-se.
Não tardou muito, ouviu-se outro chamado:
– “Augusto de Lima, não me poderias arranjar mais duas velas? As que tenho talvez não durem até de manhã”.
Recebeu as duas velas. Mais tarde, novamente incomodou o anfitrião:
– “Augusto de Lima, não me poderias trocar este tapete por outro maior?”.
Trocou-se-lhe o tapete.
E de manhã, à primeira claridade do dia, insone, olhos amedrontados, já estava o poeta em pé:
– “Não consegui dormir”, confessou. E abrindo a alma de poeta: – “Eu não estou acostumado a dormir sozinho. E o resultado é que fiquei vendo fantasmas a noite inteira”.
A essa altura, Augusto de Lima deveria estar se questionando sobre o acerto de acolher em sua casa o amigo.
Um amigo que também era indeciso. Estava na estação de Vassouras e lembrou-se que deveria comprar um par de sapatos para presentear uma parenta. Na sapataria, hesitou entre o vermelho e o azul. A princípio, inclinou-se para o vermelho. Mas era muito berrante. Por que não o azul?
Nisso apita o trem, no sinal de partida.
O poeta, agarrado ao seu pacote, corre para não perder o trem e o apanha já em movimento. Põe a cabeça pela janela do vagão e grita ao amigo que o acompanhara para se despedir: – “Antes eu tivesse comprado o vermelho!”.
Tudo isso aconteceu e virou folclore, exatamente por causa da língua do povo em tempos sem internet, tik-tok, instagram e outras modas.