Quatro em cada dez testemunhas não depõem, e julgamento do golpe mantém ritmo acelerado no STF
BRASÍLIA — Após dez semanas e uma tentativa de interferência do governo dos Estados Unidos, o Supremo Tribunal Federal (STF) encerrou na quarta-feira, 23, a fase de depoimentos das 236 testemunhas indicadas nas quatro ações penais que apuram a tentativa de golpe de Estado que têm o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) no centro das acusações. As audiências foram marcadas por ausências e queixas das defesas dos réus.
O gabinete do ministro Alexandre de Moraes, relator das ações, ouviu 141 pessoas ao longo dos últimos 70 dias. Cerca de 40% das testemunhas faltaram ou conseguiram a dispensa dos depoimentos, o que permitiu o encerramento das audiências dentro do prazo previsto pela Corte. As testemunhas arroladas pelas defesas podem faltar às audiências exceto se tiverem sido intimadas, ao contrário daquelas da acusação.

A velocidade com que o processo contra Bolsonaro tem corrido é alvo de críticas de seus aliados desde novembro, quando a Polícia Federal (PF) fechou as investigações da tentativa de ruptura democrática e formalizou o indiciamento dos bolsonaristas em seu relatório final. Três meses depois, em fevereiro, a Procuradoria-Geral da República (PGR) enviou a denúncia ao STF, que tornou réus o ex-presidente e outros acusados em março.
Nem mesmo o recesso do Judiciário, entre 2 e 31 de julho, foi obstáculo para o andamento do processo. Moraes continuou trabalhando mesmo durante a pausa, quando agendou e conduziu os depoimentos dos núcleos 2, 3 e 4, encerrados nesta semana. Pelo ritmo do julgamento, Bolsonaro e seus aliados preveem que uma possível condenação possa acontecer entre agosto e setembro.
O Núcleo 3, composto quase todo por militares, foi o que mais contribuiu para não deixar o julgamento se estender: apenas 12 das 40 testemunhas (30%) depuseram. No núcleo crucial, por sua vez, 45 das 76 testemunhas (59,21%) compareceram às audiências virtuais. Os réus que mais arrolaram testemunhas foram Anderson Torres (36), Fernando de Souza Oliveira (28), Marcelo Costa Câmara (23), Filipe Martins (21) e Silvinei Vasques (21).
Entre as testemunhas houve depoimentos de grande expectativa, como o do governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), a favor de Bolsonaro; o dos comandantes do Exército, Marco Antônio Freire Gomes, e da Aeronáutica, Carlos de Almeida Baptista Júnior, e do delegado da Polícia Federal Fábio Shor, responsável pelas investigações contra Bolsonaro e seus aliados.
A ausência de algumas testemunhas foi motivo de preocupação de advogados que apostaram nos depoimentos para aumentar a chance de vitória para seus clientes. A defesa do coronel Fabrício Moreira de Bastos pediu a intimação das testemunhas militares que não tinham comparecido, mas a juíza auxiliar Luciana Sorrentino negou.
“Os ofícios requisitórios já foram encaminhados. Além disso, conforme decisão do ministro relator, cabe à própria defesa providenciar a presença das suas testemunhas arroladas”, respondeu ela. “A senhora está indeferindo de acordo com a orientação do ministro, e não de acordo com o Código Penal, da jurisprudência. Não tem condição. Perde completamente a efetividade da Justiça”, queixou-se o advogado.
A mesma queixa foi feita pela defesa do réu Filipe Martins, que arrolou três delegados da PF como testemunhas, mas nenhum deles compareceu na data definida. Moraes afirmou que a responsabilidade pelo comparecimento dos depoentes é dos advogados, mas cedeu aos apelos e determinou a intimação do delegado Fábio Shor, tido como crucial na estratégia de defesa de Martins.
Além das críticas de bolsonaristas, o julgamento no STF sofreu uma pressão inusitada ao longo do mês. Isso porque o presidente americano Donald Trump criticou as ações na Corte contra Bolsonaro e as plataformas digitais — numa referência ao julgamento do Marco Civil da Internet — no contexto do anúncio das tarifas de 50% sobre produtos brasileiros. Mesmo entrando na rota da Casa Branca, os trabalhos do Tribunal mantiveram o ritmo.
Oitivas tiveram embates entre juízes e advogados
Em um cenário de pouca novidade nos processos, as audiências foram marcadas mais por perguntas de contextualização das situações relatadas PF e embates entre advogados e juízes do que pela elucidação dos fatos investigados.
O principal personagem dessa fase processual foi o advogado Jeffrey Chiquini, que defende Filipe Martins, ex-assessor de Bolsonaro para assuntos internacionais. Ele entrou em rota de colisão diversas vezes com Moraes, o juiz-auxiliar Rafael Tamai e os subprocuradores que representaram a PGR.

No dia 16 de julho, Moraes chegou a silenciar o microfone de Chiquini durante a oitiva do ex-ministro Gonçalves Dias. O ministro avaliou que o advogado transformou a rodada de questionamentos em inquirição da testemunha em “tom acusatório”.
“O senhor cassou a minha palavra?”, questionou Chiquini ao ter o microfone mutado. “Cassei a palavra”, respondeu Moraes.
O ministro e o advogado já tinham entrado em atrito na audiência do dia 14 de julho. O magistrado chegou a dizer para Chiquini se calar. “Doutor, enquanto eu falo o senhor fica quieto“, afirmou Moraes.
Chiquini ainda foi repreendido por Moraes nesta quarta-feira ao se referir aos envolvidos nos atos golpistas de 8 de Janeiro como vândalos e fazer perguntas repetidas sobre esse teor a Dias. “A testemunha já respondeu, doutor. Quando os golpistas chegaram, porque não são vândalos, são golpistas condenados”, disse Moraes.
Em outro momento de rusgas com Moraes e sua equipe, Chiquini e o advogado Ricardo Scheiffer Fernandes disseram ter se sentido intimidados por Tamai durante a audiência de oitiva das testemunhas na última segunda-feira, 21.
Os advogados afirmam que vão acionar o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) com uma reclamação contra o juiz. A dupla alega que Tamai os interrompeu durante o depoimento do delegado Fábio Shor para fazer um comentário que eles consideraram intimidatório.
As ações do golpe
São quatro as ações penais envolvendo os 34 réus por tentativa de golpe de Estado, divididas de acordo com as categorias definidas na acusação da Procuradoria-Geral da República (PGR).
A ação penal 2668 é referente ao núcleo 1, também chamado de “núcleo crucial” do plano da tentativa de abolir o Estado democrático de direito para manter Bolsonaro no poder. Fazem parte desse grupo o ex-presidente e outros sete réus: os generais Walter Braga Netto (ex-ministro da Defesa e Casa Civil), Augusto Heleno (ex-ministro do Gabinete de Segurança Institucional) e Paulo Sérgio Nogueira (ex-ministro da Defesa), o almirante Almir Garnier (ex-comandante da Marinha), Alexandre Ramagem (ex-diretor da Agência Brasileira de Inteligência), Anderson Torres (ex-ministro da Justiça) e o tenente-coronel Mauro Cid (ex-ajudante de ordens da Presidência).
O núcleo 2 (ação penal 2693) é acusado de elaborar a chamada “minuta do golpe”, monitorar Moraes e articular ações com a Polícia Rodoviária Federal (PRF) para dificultar o voto de eleitores do Nordeste nas eleições de 2022. Já o núcleo 3 (ação penal 2696), formado por militares da ativa e da reserva do Exército e um agente da PF, seria o responsável pelas ações táticas do suposto plano que impediria a posse do então presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT), segundo a PGR. E o núcleo 4 (ação penal 2694) se trata de pessoas acusadas de espalhar notícias falsas e atacar instituições e autoridades.