O futuro que corre por debaixo da terra
Vivemos a era dos algoritmos, em que decisões automatizadas moldam desde o que consumimos até como recursos públicos são distribuídos. Inteligências artificiais já auxiliam na formulação de políticas, análise de riscos e entrega de serviços. No entanto, enquanto a tecnologia avança em ritmo exponencial, o Brasil ainda convive com uma carência estrutural básica: cerca de 100 milhões de pessoas sem acesso à coleta de esgoto e outras 30 milhões sem água tratada. Em meio ao discurso sobre inovação e ESG, esquecemos que a infraestrutura mais transformadora pode estar invisível, enterrada sob nossos pés. Como escreveu Mario Vargas Llosa, “o símbolo da civilização não é o livro, a internet ou a bomba atômica. É a privada”.
A universalização do saneamento é uma tarefa continental — e custosa. Estima-se que, até 2033, serão necessários mais de R$ 900 bilhões em investimentos para alcançar as metas do Marco Legal do Saneamento (Lei nº 14.026/2020). Esse volume não será possível apenas com recursos públicos. É aqui que entram as debêntures incentivadas: instrumentos de mercado que canalizam capital privado para projetos de infraestrutura, com benefícios fiscais como isenção de IR para pessoas físicas e alíquotas reduzidas para jurídicas.
Desde a criação da Lei nº 12.431/2011, e especialmente após o novo marco legal, as debêntures impulsionaram 52 projetos no setor, gerando um salto de 1.444% nas captações em relação ao período anterior. Só nos primeiros quatro meses de 2025, as emissões chegaram a R$ 55,2 bilhões — alta de 64% sobre 2024. Até maio, o volume acumulado era de R$ 62,5 bilhões, concentrado em infraestrutura, com destaque para transporte, energia e saneamento. Isso demonstra o protagonismo desse mecanismo na viabilização de projetos estruturantes.
O setor de saneamento, em particular, depende dessas estruturas para garantir previsibilidade e atratividade aos investidores. Dados da ABCON-Sindcon revelam que 45% dos 58 leilões realizados desde 2020 foram viabilizados por debêntures incentivadas. Tais projetos demandam prazos longos (de 15 a 30 a anos normalmente), segurança jurídica e estabilidade regulatória — elementos que as debêntures ofereciam até a recente Medida Provisória nº 1.303/2025.
Publicada em 11 de junho, a MP propõe a revogação dos incentivos fiscais para novas emissões a partir de 2026. As mudanças incluem a cobrança de 5% de IR para pessoas físicas e elevação da CSLL de 15% para 25% para pessoas jurídicas. Tal medida quebra a previsibilidade do modelo vigente e reduz a atratividade dos títulos, sobretudo em um cenário de juros elevados, instabilidade geopolítica e competição global por capital.
O provável efeito da mudança é um desestímulo dos investimentos privados em infraestrutura. A instabilidade regulatória gerada pela proposta de revogação dos incentivos pode levar gestores de fundos a reavaliar suas estratégias. Essa reação do mercado evidencia como mudanças abruptas nas regras podem comprometer a confiança de longo prazo e desestruturar instrumentos que vinham produzindo resultados concretos.
O argumento fiscal que embasa a MP parece míope diante do retorno social das debêntures. Segundo estudos da OMS e do Instituto Trata Brasil, cada R$ 1 investido em saneamento gera entre R$ 4 e R$ 11 em benefícios sociais — como redução de doenças, aumento de produtividade e valorização imobiliária. Mesmo com o crescimento nas emissões, os títulos representam apenas 7% da necessidade total de investimento até 2033. Cortar essa fonte é cortar o fluxo de saúde, educação e desenvolvimento.
Além disso, há uma questão moral e institucional. A previsibilidade é um ativo tão valioso quanto os recursos financeiros. Mudar as regras no meio do jogo sinaliza que compromissos públicos podem ser revogados por conveniência fiscal. Isso afeta não apenas os atuais projetos, mas o futuro do investimento em setores estratégicos, como agroindústria, logística, energia e serviços públicos.
Em um país onde mais de 47 mil pessoas morrem anualmente por causas associadas à falta de saneamento, reduzir investimentos no setor não é uma medida técnica — é um retrocesso com implicações econômicas, sociais e ambientais. O saneamento básico é a base silenciosa da saúde pública, da valorização urbana e da equidade social. Mais do que tubos e estações, trata-se de infraestrutura que pode ser compartilhada com redes de fibra óptica, sensores ambientais e sistemas inteligentes de drenagem, conectando o desenvolvimento urbano à inclusão digital e à sustentabilidade. O setor, além disso, vive uma evolução positiva na sua matriz de riscos.
Com mais de R$ 21 bilhões em investimentos previstos nos próximos leilões, o setor de saneamento desponta como uma das maiores oportunidades em infraestrutura no país — não apenas pelo impacto social, mas pelo seu potencial de atrair capital privado em larga escala. Preservar os incentivos fiscais às debêntures incentivadas é manter ativa uma engrenagem que combina previsibilidade regulatória, retorno econômico e benefício coletivo. Em um cenário fiscal restrito, no qual o próprio governo admite não ter recursos suficientes para suprir sozinho as necessidades do setor, desmobilizar essa fonte de financiamento é comprometer a viabilidade de projetos essenciais. O Brasil precisa seguir avançando, com seriedade e visão de futuro, para transformar o saneamento em uma plataforma de saúde, inclusão, tecnologia e desenvolvimento sustentável.
Este texto reflete única e exclusivamente a opinião do(a) autor(a) e não representa a visão do Instituto Não Aceito Corrupção (Inac). Esta série é uma parceria entre o Blog do Fausto Macedo e o Instituto Não Aceito Corrupção. Os artigos têm publicação periódica