8 de agosto de 2025
Politica

A silenciosa erosão das vagas vinculadas nos Tribunais de Contas

Venire contra factum proprium é uma expressão usada no direito, que representa o princípio de que não é válido agir contra os próprios atos. Em outras palavras: ninguém pode se valer de uma omissão intencional para escapar de uma obrigação legal que lhe é imposta. Trata-se de uma expressão clássica da boa-fé objetiva, da moralidade e da vedação ao comportamento contraditório: a omissão intencional jamais pode constituir escudo jurídico para a produção de efeitos válidos. O Estado que deliberadamente deixa de criar ou prover cargos previstos na Constituição não pode, depois, usar essa mesma omissão como justificativa para nomeações casuístas em vagas reservadas a agentes concursados.

Mesmo diante de sólida jurisprudência dos Tribunais Superiores que veda expressamente o desvio de finalidade no preenchimento das vagas vinculadas nos Tribunais de Contas, persiste — como uma corrente subterrânea que drena as bases da legalidade — um movimento político de enfraquecimento da composição mista dessas Cortes. Trata-se de uma prática reiterada, discreta, mas profundamente corrosiva: a nomeação, pelo Chefe do Executivo, de terceiros alheios às categorias de Auditor (Conselheiro Substituto) e de Procurador de Contas, para cadeiras constitucionalmente reservadas a esses agentes, ingressos via concursos públicos.

Sob o manto de exceções administrativas ou da alegação de inexistência de quadros habilitados, esconde-se, na verdade, a omissão deliberada. Deixa-se de criar ou prover os cargos constitucionalmente exigidos — ou ignora-se a sua existência —, para, em seguida, justificar uma nomeação livre travestida de necessidade. Assim, a exceção se transforma em regra e a omissão vira estratégia.

Diferentemente, no plano do Judiciário, o Chefe do Executivo não ousa violar o modelo constitucional de composição. Jamais se cogitou, por exemplo, nomear livremente para as vagas do quinto constitucional nos Tribunais de Justiça alguém fora das listas enviadas pela OAB ou pelo Ministério Público. Sabe-se que a legitimidade e a estabilidade dessas instituições dependem do respeito à regra do jogo. Por que, então, esse mesmo zelo não é observado quando se trata da composição dos Tribunais de Contas, cuja importância no controle da Administração Pública não é menor?

Essa subversão do arranjo constitucional ocupa o cerne de duas ações atualmente em tramitação no Supremo Tribunal Federal: a ADI 7053/DF e a ADO 87/BA – ambas de iniciativa da Associação Nacional dos Ministros e Conselheiros Substitutos dos Tribunais de Contas (AUDICON) — revelam a gravidade e a extensão desse problema. Ambas requerem à Corte Suprema que reafirme os limites constitucionais ao poder de nomeação do Chefe do Executivo e restaure a legitimidade do modelo de controle externo desenhado pela Constituição de 1988.

O caso da Bahia é particularmente preocupante: no TCE/BA, o Estado jamais criou o cargo de Auditor (Conselheiro Substituto), mesmo após decisões expressas do STF nas ADIs 4541 e 5587, que reconheceram a inconstitucionalidade da omissão e determinaram a estruturação da magistratura de contas exercida pelo Auditor (Conselheiro Substituto). Apesar das determinações expressas, o Estado segue inerte — e pior, avança na contramão, tentando prover a vaga vinculada por meio de nomeação livre, justamente porque o posto – que deveria estar preenchido – não foi nem criado.

Essa prática distorce a arquitetura institucional dos Tribunais de Contas. A nomeação livre em vaga reservada a determinada categoria de agente equivale a trocar os alicerces por ornamentos. Fragiliza-se a pluralidade técnica de formação e de saberes em nome de questões outras, e o resultado é um corpo institucional menos plural e mais permeável à influência externa.

Sob a justificativa de excepcionalidade, o que se perpetua é uma erosão silenciosa da lógica republicana: enfraquece-se a separação entre a função fiscalizatória e o poder político, enfraquece-se a racionalidade democrática de representação das cadeiras que une legitimidade, saber técnico-político e estabilidade funcional, abrindo espaço para um controle externo simbólico, esvaziado de força e independência.

As consequências são profundas e se alastram como fissuras numa represa:

  • Comprometimento da especialização e da eficiência técnica: o enfraquecimento da magistratura de contas compromete o debate plural nos pareceres e decisões dos Tribunais;
  • Abalo à moralidade e à isonomia: a percepção de favorecimento político mancha a imagem dos Tribunais e dilui a confiança social na sua função fiscalizadora;
  • Erosão da autonomia e do autogoverno: o controle externo da gestão pública está sujeito a interferências que solapam a independência funcional, garantida pela Constituição;
  • Violação de direitos adquiridos: os membros dos cargos de Auditor (Conselheiros Substitutos) e Procurador de Contas veem, reiteradamente, negado o acesso a cargos que a própria Constituição lhes assegura.

Importante refletir que a Constituição prevê essas vagas como espaços destinados a categorias com critérios rigorosos de ingresso, estabilidade e conduta no âmbito dos tribunais de contas. Romper com isso é distorcer não apenas a letra, mas o espírito da norma.

Cabe ao Supremo Tribunal Federal — ao julgar a ADO 87, atualmente com pedido de vista do Ministro Flávio Dino, e a ADI 7053, com julgamento em andamento — reafirmar os limites constitucionais da nomeação, garantir a composição mista dos Tribunais de Contas e blindá-los contra a captura político-partidária. Mais que corrigir um desvio jurídico, trata-se de resgatar um pacto institucional.

A responsabilização, a proteção da legalidade e o respeito ao preenchimento das cadeiras de Conselheiros não se limitam a uma disputa institucional ou corporativa, mas revelam a vitalidade de um sistema democrático que depende da correta atuação das Cortes de Contas, em que cada cadeira de Conselheiro carrega uma importante representação desse sistema para assegurar a legitimidade e a pluralidade dos debates travados rotineiramente em seus julgamentos. Cada cadeira nos Tribunais de Contas representa mais do que um cargo — representa um pilar da fiscalização responsável e independente. É assegurar fidelidade à democracia e zelo pelo interesse público.

Ignorar essa distorção é permitir que a Constituição seja violada não com estardalhaço, mas com silêncio — um silêncio que, a longo prazo, mina as bases do controle público, esvazia sua legitimidade e corrói os pilares institucionais dos tribunais de contas.

 

 

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