Com base infiel e impasse no Congresso, Lula é o presidente que mais governa por decretos desde 2003
Em meio à fragmentação partidária, à dificuldade de formar maioria no Congresso e ao avanço das emendas parlamentares, os últimos presidentes passaram a recorrer com mais frequência aos decretos como alternativa para reorganizar políticas, mexer em tributos e regulamentar leis, muitas vezes sem articulação ampla com deputados e senadores. O petista Luiz Inácio Lula da Silva (PT) é o presidente que mais usou esse tipo de instrumento desde 2003.
Levantamento do Estadão mostra que, desde o início de seu terceiro mandato até julho de 2025, Lula editou 1.246 decretos, número superior ao de qualquer outro presidente no mesmo intervalo de tempo desde 2003. De 2019 a julho de 2021, Jair Bolsonaro assinou 1.101 decretos. Michel Temer, que governou entre 2016 e 2018, publicou 709. A marca de Lula 3 também já ultrapassa o volume registrado, no mesmo período, em seus dois primeiros mandatos, superando o editado por Dilma Rousseff no início do primeiro e segundo governo.
Decretos presidenciais são instrumentos que permitem ao presidente detalhar leis já aprovadas ou organizar a administração pública sem necessidade de aval do Congresso.
Parte desses atos trata de temas administrativos e operacionais, como nomeações, reestruturação de órgãos e atos internos da máquina pública. Ainda assim, cientistas políticos destacam que tem crescido o uso do instrumento para decisões com impacto fiscal, regulatório ou de políticas públicas, o que contribui para ampliar as tensões entre os Poderes.
O episódio mais emblemático desse embate recente foi o decreto que elevou a alíquota do IOF sobre operações de crédito. A medida provocou reação imediata do Congresso, que aprovou um Projeto de Decreto Legislativo (PDL) e derrubou o ato presidencial, algo que não ocorria desde 1992. O PDL é o instrumento usado pelo Legislativo para sustar atos normativos do Executivo considerados abusivos. O tema foi parar no Supremo Tribunal Federal, que manteve parte do decreto de Lula.
Para o cientista político e professor do IDP Vinicius Alves, o aumento no número de decretos mostra uma tentativa do Executivo de promover mudanças importantes em um cenário de crescente dificuldade para formar consensos amplos com o Congresso, marcado por fragmentação partidária e distanciamento ideológico entre os principais atores da Câmara.
Ele avalia que, se houvesse mais espaço para articulação entre os Poderes, essas mudanças poderiam vir reunidas em leis negociadas com os partidos da base e aqueles que controlam a pauta na Câmara. “Esse fenômeno sinaliza, de modo geral, que está em curso um processo desfavorável ao presidente na tentativa de controle da agenda.”
A percepção se repete no Congresso. Na avaliação do deputado Mário Heringer, líder do PDT na Câmara, um dos fatores que explicam a falta de consenso entre Executivo e Legislativo é a ausência de diálogo. Para o parlamentar, Lula de fato se afastou das articulações com o Congresso neste terceiro mandato. “É o período em que Lula está mais distante do Legislativo de verdade”, diz, afirmando que a postura contribuiu para uma série de derrotas do governo.
O professor de ciência política do Insper, Leandro Consentino, também aponta que o aumento no número de decretos está ligado ao empoderamento do Congresso, especialmente com a elevação do valor das emendas parlamentares – recursos públicos usados por deputados e senadores para atender às suas bases eleitorais. Ele destaca que, a partir de 2015, houve diversas alterações nas leis orçamentárias que ampliaram a autonomia dos congressistas, como a obrigatoriedade de pagamento das emendas individuais pelo governo.
“Com mais controle sobre o Orçamento, o Congresso passou a ter menos interesse em negociar pautas com o Executivo, o que enfraquece a capacidade do presidente de formar maioria”, afirma. Em 2025, foram aprovados cerca de R$ 50 bilhões desse tipo de recurso.
Para Consentino, o aumento no uso de decretos revela dificuldades que não se restringem ao governo Lula e tendem a atingir também os próximos presidentes, à medida que o instrumento se consolida como uma das poucas ferramentas restantes para manter a governabilidade.
“Os presidentes estão cada vez mais limitados na articulação com o Congresso e, diante desse cenário, o decreto tende a se firmar como uma válvula de escape para entregar respostas mínimas à sociedade”, diz.
Congresso reage e Bolsonaro é o mais questionado
O uso mais recorrente de decretos também tem provocado reações crescentes do Legislativo. Levantamento feito pelo cientista político Murilo Medeiros, da Universidade de Brasília (UnB), mostra o salto de PDLs de 116 no primeiro governo Lula para 1.506 no governo Bolsonaro, tornando o ex-presidente o mais questionado por esse tipo de proposta.
No atual governo, Lula já foi alvo de 662 PDLs, mesmo ainda no terceiro ano de mandato, superando os números registrados nos dois mandatos anteriores e os de Dilma no mesmo intervalo. Vários projetos do tipo tentam barrar um mesmo decreto, como no caso do IOF, que sozinho motivou mais de 20 propostas distintas.
Para Medeiros, todas essas transformações alteraram a correlação de forças entre Executivo e Legislativo, restringindo o espaço de negociação política e ampliando o protagonismo do Congresso. Nesse novo cenário, explica, o decreto deixou de ser um instrumento meramente administrativo para se tornar uma ferramenta estratégica de ação direta do presidente, ainda que sob o risco de intensificar os conflitos entre os Poderes.
“O decreto passou a ocupar o espaço que antes era da lei, por conta das dificuldades de o governo negociar com o Congresso. Mas, ao fazer isso, o presidente também se expõe mais a reações e ao controle político do Legislativo”, afirma Murilo.