Da tradição golpista do século 20 à maior estabilidade democrática do século 21
A Bolívia realiza neste domingo a sua 10ª eleição consecutiva para a Presidência da República desde a redemocratização em 1982. É um feito notável. Afinal, a Bolívia foi, durante o século XX, o país com maior número de golpes militares da América Latina: foram 15 entre os 167 ocorridos na região. Até os anos 1980, cada década registrava, em média, nove golpes de Estado em algum país latino-americano.
O contraste com a realidade atual é gritante. Hoje, com exceção de Cuba, Venezuela e Nicarágua, os países latino-americanos são democracias consolidadas que realizam eleições competitivas, limpas e com alternância de poder. Nos últimos 30 anos, apenas 16 presidentes não concluíram seus mandatos — e mesmo nesses casos, como mostram os episódios recentes da Bolívia, Equador, Brasil e Peru, a interrupção ocorreu dentro das regras do jogo democrático, por impeachment e/ou decisões judiciais.

O que explica essa virada histórica? Ao contrário do que previam os antigos e novos críticos do presidencialismo multipartidário, que o consideravam ingovernável, instável e disfuncional, o segredo da resiliência democrática na região foi outro: a consolidação de um modelo de presidencialismo multipartidário que combina presidentes fortes com instituições de controle igualmente robustas.
Como mostra Gabriel Negretto no livro “Making Constitutions: Presidents, Parties and Institutional Choice in Latin America”, as constituições latino-americanas outorgaram aos presidentes amplos poderes, garantindo-lhes iniciativa política e capacidade de governar em cenários fragmentados. Mas, ao mesmo tempo, os freios e contrapesos — legislativos e judiciais — foram fortalecidos. O resultado tem sido uma combinação rara: governos relativamente eficazes, capazes de formar coalizões e aprovar políticas, mas limitados por instituições que contêm impulsos autoritários e punem desvios de conduta.
É esse desenho institucional que explica por que, em pleno século XXI, a América Latina passou de campeã mundial de golpes a campeã da estabilidade democrática no mundo em desenvolvimento. Quando presidentes desafiam as regras ou tentam ampliar seus poderes de forma ilegítima, são removidos não mais por tanques nas ruas, mas por mecanismos constitucionais.
A eleição de hoje na Bolívia é mais uma demonstração desse novo padrão. As democracias, inclusive as latino-americanas, continuam imperfeitas. Mas sua resiliência repousa em uma arquitetura institucional que combina governabilidade com limites claros ao poder presidencial. Esse é o segredo da estabilidade democrática latino-americana.