Os muros que nos cercam
A História não caminha em linha reta. Ela se move em ciclos — fluxos e refluxos de ideias, comportamentos, quedas e ascensões. Impérios se ergueram e ruíram ao sabor dos ventos políticos, quase sempre sustentados pela complacência ou pela manipulação das massas.
Não há nada que mais incomode o poder constituído do que o livre pensar. Nada é mais poderoso do que a capacidade humana de criar, recriar, observar a realidade e, sobre ela, construir conceitos e estruturas. Ai daqueles que se atrevem a desafiar verdades majoritariamente aceitas, ainda que distantes da realidade ou até mesmo das leis da natureza.
Em 399 a.C., Sócrates conheceu o cárcere sob a acusação de corromper a juventude ateniense. O crime? Questionar tradições e autoridades. Recusou-se a fugir. Escolheu morrer bebendo cicuta. Morreu, mas o livre pensar que defendia sobreviveu.
Séculos depois, em 215 d.C., a cidade de Alexandria presenciou o massacre ordenado pelo imperador romano Caracala. Milhares de mortos. O motivo? Habitantes que ousaram satirizar o imperador em espetáculos públicos, ironizando sua aparência e os rumores de que teria assassinado o irmão Geta.
Na era medieval, a sombra não se dissipou. Entre as leis das duas espadas, Estado e Igreja perseguiram e amaldiçoaram verdades científicas. Entre os séculos XVI e XVII, Giordano Bruno e Galileu Galilei foram levados à Inquisição por defenderem a visão copernicana do heliocentrismo contra o modelo geocêntrico ptolomaico. O livre pensar levou Bruno à morte, queimado vivo em uma fogueira em Roma, enquanto Galileu, renunciando publicamente às suas convicções, foi condenado à prisão perpétua domiciliar e teve seus livros proibidos.
Ainda no século XVI, Phillip Howard, Conde de Arundel, nobre inglês e fervoroso defensor da fé católica, enfrentou a perseguição protestante após a Reforma Inglesa de Henrique VIII e a excomunhão da rainha Elizabeth I. Em 1585, foi preso na Torre de Londres sob a acusação de ameaça à segurança pública por professar sua fé. Lá permaneceu por dez anos, até falecer em 1595. Em uma das paredes da Torre, ainda é possível encontrar a seguinte inscrição deixada por Howard, símbolo de devoção e resignação:
“Quanto mais aflição suportamos por Cristo neste mundo, maior será a glória que receberemos com Cristo no mundo vindouro.”
A História seguiu seu curso. Ao longo dos séculos, muros foram erguidos, derrubados e reconstruídos. Sempre o mesmo padrão: a força e a censura como armas contra a quebra das estruturas sociais vigentes.
E chegamos à atualidade. Os erros do passado não bastaram. Os vícios do poder permanecem, travando uma nova batalha voraz pelo controle absoluto do livre pensar — agora travestida de modernidade.
Antes, controlar o pensamento era fácil: bastava dominar os meios de comunicação tradicionais, filtrando as informações a serem difundidas e moldando uma opinião pública uniforme. Hoje, contudo, algo mudou. O monopólio da palavra se dissipou. Talvez este seja o marco da primeira revolução do século XXI: a derrubada do muro cognitivo. Com a internet e as redes sociais, todos passaram a falar. E a ouvir. Vetor e receptor se fundiram. A diversidade do livre pensar veio à tona, rompendo o filtro dos editores e do poder majoritário de então, revelando a heterogeneidade das visões de mundo.
Isso gerou medo. E o medo sempre reacende o instinto obsessivo de controle do livre pensar. Restringi-lo ou moldá-lo tornou-se objetivo dos que ostentam a “caneta forte” e buscam manter seus status, ainda que sem legitimidade ou reconhecimento de seus “subordinados”.
A clássica separação de poderes cedeu espaço ao voluntarismo, reunindo em si funções persecutórias e decisórias, numa nova forma de simbiose jurisdicional que se acreditava sepultada desde a derrocada absolutista medieval.
Nos últimos anos, crítica política passou a ser interpretada como indício, um atestado ideológico, a caracterizar risco ao Estado Democrático de Direito. Danos ao patrimônio público, antes tolerados como “manifestação política”, passaram a ser considerados atentados à ordem. Pichações em monumentos públicos, por vezes relegadas à categoria de “liberdade de expressão”, tornaram-se motivo para encarcerar alguém por mais de uma década. Ordens de prisão baseadas em predileções político-ideológicas, remoção sumária de conteúdo sem o devido processo legal e bloqueio de contas de empresas distintas foram instrumentos recorrentes — tudo sob o pretexto da “defesa da democracia”.
E, sob tal pretexto, a democracia se vê cada vez mais calada, acuada, cercada de novos muros — não de pedra, mas de medo —, com outros tantos ainda a serem erguidos, certamente pelas mãos jurisdicionais e legislativas dos que visam a autopreservação do poder.
Eis a síntese: ciclos que se fecham e se reabrem; o fluxo e refluxo das correntes do tempo, arrastando para a mesma vala comum, sob rótulos diferentes, os mesmos abusos do poder contra o livre pensar.
Certamente, a História julgará a todos. Assim como Phillip Howard foi canonizado em 1970, ou quando, em 1992, o Papa João Paulo II reconheceu os erros da Igreja Católica em relação a Galileu. Mas desculpas tardias não devolvem as vozes caladas. Não apagam o medo que paralisou gerações. Não recuperam o tempo perdido sob o peso de muros erguidos contra o pensamento livre.
Quantos muros ainda teremos de derrubar para que o livre pensar seja visto como a única via de evolução da sociedade? Para que se compreenda que a mente aprisionada é o deserto da sapiência? Que a concordância forçada é apenas subserviência — e subserviência mata a alma?
Enfim, quantos muros nos cercam? E até quando?