Angústias docentes
Toda pessoa consciente que se propõe a assumir uma função docente deve estar hoje bastante angustiada. Isso porque o Brasil persistiu no equívoco de tratar a educação como transmissão de informações, concebendo o professor como o detentor de todo o conhecimento e o alunado como tabula rasa, desprovido de qualquer noção a respeito da disciplina a ser enfrentada.
O advento da Quarta Revolução Industrial, a par da profunda mutação da sociedade, propiciou o acesso ao volumoso acervo universal de dados, hoje acessíveis e disponíveis a um mero clique de qualquer bugiganga eletrônica.
No artigo “Um diálogo necessário sobre o devir de uma nova ontologia do saber”, divulgado no Jornal da USP, em 18.7.25, o Professor Edison Luís dos Santos, coordenador do Grupo de Estudos Ontologias Abertas da ECA-USP, fornece consistente reflexão, que deveria merecer leitura de parte de todos os que enfrentam sala de aula.
Ele parte de um convite ao exercício de humildade intelectual e reflexão crítica, para análise dos desafios atuais a partir da relação entre Biblioteconomia e Ciência da Informação. Nada obstante as especificidades dos dois ramos científicos, o raciocínio permite um instigante exercício a respeito da docência. Para o Professor Edson, o debate é mais abrangente:
“E se, em vez de tentar definir fronteiras ou buscar equilíbrios diplomáticos, assumíssemos que ambas estão em colapso — não por fraqueza, mas porque o próprio conceito de “campo disciplinar” está se dissolvendo na era da infocracia?”.
Sem desprezar as tradições de ambas, estes tempos confusos foram revisitados por tecnologias digitais, algoritmos e múltiplas formas de produção e disseminação da informação. Cita Byung-Chul Han, autor de “Infocracia”, para quem “a informação já não é mais um bem a ser organizado, mas um fluxo a ser governado”.
Os espaços estão sendo corroídos diante do advento da IA, “a desintermediação do acesso à informação, a crise das instituições de memória (bibliotecas, arquivos, museus) e a mercantilização do conhecimento”.
A proposta do autor é a reconceituar os saberes em favor de uma nova ontologia do saber, que ele considera “uma ciência pós-disciplinar da ‘gestão do caos informacional”. Pois “o que significa organizar, preservar e dar acesso ao conhecimento em um mundo onde a informação não está mais contida em livros ou bancos de dados, mas pulverizada em fluxos algorítmicos, redes descentralizadas e memórias efêmeras?”.
Cuida-se de um campo híbrido, temporário e experimental, com quatro eixos: 1. Crítica decolonial aos sistemas de classificação, pois as estruturas tradicionais são heranças coloniais que perpetuam hierarquias do saber; 2) a epistemologia da infraestrutura, já que plataformas digitais são os novos “organizadores” do conhecimento, muitas vezes de forma opaca e antidemocrática; 3) a ecologia dos saberes, na qual os conhecimentos tradicionais são marginalizados e não incluídos em sistemas; 4) a teoria do caos aplicada à informação, na constatação de que a desordem e a hiperconexão são irredutíveis e que o papel do profissional não é controlar, mas mediar conflitos e curar rupturas.
Se o cenário desequilibra a atuação de bibliotecários e cientistas de informação, que passam a ser “mediadores que navegam entre lógicas incomensuráveis”, qual o papel dos docentes nesta era digital?
Antigamente, a visita à biblioteca era obrigatória. Por isso elas eram intensamente frequentadas, para pesquisas e consultas aos acervos. Hoje, como diz Edison Luís dos Santos, elas já não são “templos do saber”, mas são “zonas de conflito, onde se negociam disputas de memória, apagamentos algorítmicos e direitos digitais”.
A conclusão é melancólica. Constata-se “o caráter agonístico da informação na era algorítmica”. A noção de “informação” está sendo confrontada. Não são apenas a Biblioteconomia e a Ciência da Informação ameaçadas de degola, no fenômeno de morte das disciplinas. Algo que não deve ser considerado um necrológio, mas servir qual metáfora de transformação.
Em idêntica e até mais aflitiva situação encontram-se todas as demais ciências humanas, inclusive a pedagogia, a didática, a retórica, o direito, ramos em que patina e capenga a docência tupiniquim. Vale concluir com a citação final do texto, a citação de Verónica Perales Blanco: “o conhecimento floresce na diversidade e no respeito mútuo”.
É urgente a revisita e a reformatação do projeto educacional pátrio.