A teimosia que leva à paralisia das obras públicas
Durante sessão plenária de 30 de julho, o presidente do Tribunal de Contas da União (TCU), ministro Vital do Rêgo, divulgou informações atualizadas do Painel de Obras Paralisadas. A ferramenta, implementada em 2020 para tornar mais clara a situação dos projetos financiados com fundos federais, mostrou que até abril deste ano, das 22.621 obras registradas, 11.469 estão inativas, o que corresponde a 50,7% do total. As áreas mais atingidas por essas interrupções continuam sendo aquelas que atingem diretamente a população mais vulnerável: educação e saúde, que juntas somam 70% das paralisações.
Paralisações de obras estão entre os principais desafios do setor da infraestrutura no Brasil. As causas declaradas para as suspensões são várias, mas uma delas merece atenção: os modelos de disputas das licitações de obras e serviços especializados de engenharia. Modelos abertos de disputa, a exemplo do utilizado nos pregões, propiciam a escolha de propostas inexequíveis.
Muitas vezes, as licitações que adotam fases de lances viva-voz, com o objetivo de reduzir o preço, se transformam em um jogo irrefletido pelo orçamento mais baixo. Tais modalidades favorecem a oferta de descontos excessivos, sem lastro na realidade. Apesar de serem aparentemente vantajosas aos cofres públicos, tais propostas, com baixa sustentabilidade econômica, costumam se traduzir na paralisia de obras, na necessidade de se firmar aditivos contratuais e, consequentemente, na elevação dos custos dos projetos. O velho dito popular – “o barato sai caro!” – se aplica integralmente a tais circunstâncias.
A Lei nº 14.133/2021 trouxe mais complexidade ao tema. Isso porque, de um lado, vedou o uso do pregão para obras e serviços especializados de engenharia (art. 29, parágrafo único); mas, de outro, proibiu o modelo de disputas fechado quando o critério de escolha da licitante for o menor preço ou maior desconto (art. 56, parágrafo 1º).
Essa antinomia tem sustentado a realização de licitações para contratação de obras públicas pelo modo de disputa aberto, que incentiva os licitantes a reduzirem seus preços de forma sucessiva. Muito deles, conhecedores da dificuldade da Administração em rescindir contratos e de levar a termo processos administrativos sancionadores, diminuem as ofertas para além do exequível, contando com aditivos contratuais que permitam a conclusão do objeto. Quando isso não acontece o desfecho é certo: mais uma obra paralisada para o cômputo do TCU.
Em face disso, o ideal, é claro, seria realizar uma reforma na Lei, de modo a proibir, em definitivo, o uso do modelo aberto de disputas nas contratações de obras e serviços de engenharia. Nessa oportunidade, também se deveria recuperar o dispositivo suprimido da versão final dessa norma, que exigia que, face à expedição da correlata Ordem de Serviço, fosse realizado o depósito em conta vinculada dos recursos financeiros necessários para custear cada etapa de realização das obras e serviços.
O mais curioso é que o próprio TCU, que tem detectado o número assombroso de obras paralisadas e identificado quanto isso atrasa o desenvolvimento nacional, resiste à alteração da lei.
Enquanto a resistência permanece e as mudanças não acontecem, é necessário fazer uso das ferramentas disponíveis. A Nova Lei de Licitações estabeleceu três importantes frentes que podem ajudar a atenuar os efeitos negativos do modelo aberto de disputas. Cabe aqui um parêntese. As prescrições normativas só poderão melhorar o ambiente das contratações públicas se forem bem aplicadas, com vistas a alcançar os objetivos prescritos pela Lei n° 14.133/2021.
O art. 11, inciso I, da Nova Lei de Licitações e Contratos estabelece que, entre a persecução de outros objetivos, a licitação deve assegurar a seleção da proposta apta a gerar o resultado de contratação mais vantajoso para a administração pública, inclusive no que se refere ao ciclo de vida do objeto. Logo, verifica-se que a vantajosidade não incorpora apenas a questão do preço absoluto, mas também da qualidade do bem, da segurança na sua execução, do tempo necessário para a conclusão, dos custos de transação envolvidos etc.
Em primeiro lugar, a Nova Lei previu importante sistemática para o tema da pré-qualificação, que é procedimento de seleção anterior à licitação, realizado por meio de convocação via edital, com vistas à análise dos requisitos de habilitação, na íntegra ou em parte, dos interessados no certame ou do objeto a ser contratado (Art. 6º, XLIV). Trata-se de instrumento auxiliar das contratações (Art. 78, II), cujo objetivo é incrementar o planejamento dos projetos públicos e permitir que a disputa de preços se dê entre competidores qualificados, com experiência, know-how e estrutura necessários à execução do objeto.
Desse modo, poderão ser selecionados, previamente, licitantes que demonstrem possuir condições de habilitação para participar de futuro procedimento licitatório relacionado a programas de obras ou de serviços definidos pela administração (Art. 80, I). Os serviços pré-qualificados devem compor o catálogo de bens e serviços da administração, assim como sua realização poderá ser feita de modo segmentado ou em grupos, de acordo com as especialidades dos prestadores (Art. 80, §5º e §6º).
Além disso, com validade de até 1 ano ou prazo não superior ao de validade dos documentos apresentados (Art. 80, §8º), a pré-qualificação poderá ocorrer em relação a todos ou parte dos requisitos técnicos de habilitação (Art. 80º, §7º). Importante notar que a licitação que vier na sequência de procedimento de pré-qualificação poderá ser circunscrita aos licitantes pré-qualificados, o que tende a garantir maior controle de qualidade na disputa por parte da administração. Desde a edição da Lei, em 2021, poucos procedimentos desta natureza foram realizados.
Em acréscimo, a Nova Lei trouxe exigência de prestação de garantia adicional ao licitante vencedor cuja proposta seja inferior a 85% do valor orçado pela administração, equivalente à diferença entre este e a proposta (Art. 59 §5º). A regra exige que, na hipótese de ser realizada oferta mais ousada, a licitante apresente garantia extra ao Estado. No fundo, essa é uma boa forma de desestimular propostas com orçamentos subdimensionados e de garantir que as finalidades públicas da contratação sejam atingidas.
Além disso, o texto também prevê que, no caso de obras e serviços de engenharia, as propostas com preços inferiores a 75% do valor orçado pela administração deverão ser desclassificadas sumariamente. Tais orçamentos serão considerados inexequíveis (Art. 59, §4º). Esse caso, porém, pede atenção redobrada dos órgãos de controle, como os Tribunais de Contas do país, que costumam entender que, mesmo em caso de ofertas muito inferiores aos patamares de exequibilidade fixados na legislação, a licitante poderia provar que seu orçamento ainda assim é factível.
A manutenção dessa intepretação, que vigora sob a égide da atual Lei de Licitações (Lei n° 8.666/1993), acaba com a inovação e com a garantia trazidas pela Nova Lei e faz de sua prescrição letra morta, impondo os mesmos desafios que temos vivenciado até aqui e que culminaram no denso estoque de obras paralisadas.
A fim de combater o cenário de paralisia de obras, é preciso ter muita cautela ao se promover qualquer flexibilização nas exigências da Lei. Certamente, uma cultura decisória dos controladores de políticas públicas mais voltada para resultados, e menos engessada pela lógica do menor preço, ou melhor do mito do menor preço, poderá favorecer a segurança nos projetos de obras e serviços de engenharia, imprescindível para o crescimento sustentável do país.