Deputados empregam em gabinetes assessores parlamentares com mandados de prisão
BRASÍLIA – Três secretários parlamentares, lotados nos gabinetes de três deputados federais diferentes, possuem mandados de prisão em aberto contra si há pelo menos dois meses e, ainda assim, exercem normalmente as suas atividades na Câmara. Esses funcionários comissionados foram nomeados entre dezembro do ano passado e abril deste ano pelos parlamentares Josivaldo JP (PSD-MA), Luciano Alves (PSD-PR) e Dagoberto Nogueira (PSDB-MS).
O Estadão cruzou as bases de dados de servidores comissionados da Câmara, cujo número de funcionários ultrapassa 11 mil, e do Banco Nacional de Mandados de Prisão (BNMP), que atualmente contabiliza mais de 250 mil ordens pendentes de cumprimento. Foram identificados 240 nomes iguais nas duas listas.
Os casos identificados pelo Estadão ilustram como a falta de comunicação entre órgãos públicos permite que pessoas com pendências no sistema de Justiça exerçam livremente as suas atividades e até recebam salários de instituições estatais sem serem identificados e levados a responder por seus atos.

Procurados, Josivaldo JP e Dagoberto Nogueira afirmaram ter demitido os secretários após ter conhecimento da situação deles a partir do contato da reportagem (veja mais abaixo). Ao ser questionada pelo Estadão sobre esses casos, a Câmara respondeu que não há integração entre as bases de dados de servidores e os repositórios mantidos por outros órgãos públicos, como o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) que mantêm o BNMP.
“Não há previsão na legislação brasileira de busca de antecedentes criminais e de mandados de prisão em aberto para a nomeação e/ou a posse em cargo em comissão. O que a lei exige, entre outras coisas, é que o nomeado esteja no pleno gozo de seus direitos políticos, que podem estar suspensos em casos de condenação criminal transitada em julgado, enquanto durarem os seus efeitos, ou em casos de condenação por improbidade administrativa”, afirmou a Câmara.
“No caso desta Casa, ao ser investido em cargo em comissão, o indicado assina documento declarando se responde processos judiciais criminais”, completou.
O Estadão entrou em contato com os gabinetes de 187 deputados que empregam esses funcionários e solicitou o envio dos comprovantes de “nada consta” no BNMP. A Câmara não fornece qualquer dado pessoal além do nome, o que impede a checagem desses comissionados. O CNJ exige dados como CPF, nome da mãe e nome do pai para diferenciar os acusados.
Após o contato da reportagem, 94 comissionados não tiveram as suas declarações de regularidade no CNJ enviadas pelos deputados – ou seja, é possível que o número de secretários parlamentares com mandado de prisão seja superior aos localizados.
Maus-tratos de animais e pensão alimentícia provocaram os mandados de prisão
Um dos assessores com mandado de prisão é Angelo Felippe Rodrigues Mansano, que trabalha desde dezembro do ano passado no gabinete do deputado federal Luciano Alves. Ele recebe R$ 2.247 de salário, além R$ 1,7 mil em auxílios. A ordem de reclusão em seu nome foi expedida no dia 10 de março deste ano pela Vara de Execuções Penais do Tribunal de Justiça do Paraná (TJ-PR) por “descumprimento voluntário” da liberdade provisória concedida como medida cautelar.
Mansano responde pelo crime de “abuso, maus-tratos, ferimento ou mutilação de animais silvestres, domésticos, nativos ou exóticos”, conforme descrito no mandado de prisão. O seu caso no TJ-PR, embora seja público, não apresenta as peças processuais que embasaram as decisões de liberdade condicional e, posteriormente, prisão em regime inicial aberto.
Ao tomar posse do cargo de secretário parlamentar, a Câmara exige do comissionado a assinatura de documentos nos quais declara não responder a processos na Justiça. Mansano, contudo, é alvo de ação na Justiça do Paraná pelo menos desde março de 2024, quase nove meses antes da nomeação no gabinete de Luciano Alves.
Em nota ao Estadão, a Câmara afirmou que “eventualmente é exigida certidão cartorária comprovando a situação” judicial da pessoa nomeada e que “também é realizada uma pesquisa por amostragem na internet para verificar os dados do indicado”. A Casa foi questionada pela reportagem especificamente sobre o caso de Mansano, mas não houve resposta.
A documentação fornecida pelos nomeados e as buscas na internet ainda são analisadas pela área jurídica do Departamento de Pessoal da Câmara dos Deputados, que emite um parecer sobre a possibilidade ou não de posse do cargo. O órgão chancelou a posse de Mansano em dezembro do ano passado, mesmo com o processo contra ele em fase avançada na Justiça, tendo em vista a expedição de ordem de prisão apenas três meses após a assunção do cargo no gabinete de Luciano Alves.
“Em um caso desses, há três dimensões que estão falhando: primeiro, quem assina o documento (declarando que não há pendências judiciais); segundo, o deputado que indica um cargo de confiança; terceiro, a própria Câmara, que poderia aperfeiçoar os mecanismos (de controle)”, avaliou o professor e pesquisador Rodrigo Prando, da Universidade Presbiteriana Mackenzie.
Além de Mansano, outros dois comissionados têm ordens de prisão pendentes de cumprimento. Os secretários parlamentares Raul Ribeiro Batista II e Leonardo Scardini, lotados respectivamente nos gabinetes dos deputados Josivaldo JP e Dagoberto Nogueira, são alvos de mandados de encarceramento por um crime recorrente entre homens no Brasil: pendência no pagamento de pensão alimentícia.
O mandado de prisão de Scardini foi expedido no dia 30 de maio deste ano pela 2ª Vara de Família e Sucessões de Campo Grande (Mato Grosso do Sul). Acusado de atrasos no pagamento da pensão, ele recebe R$ 4,2 mil líquidos por mês como secretário parlamentar de Dagoberto, além de R$ 1,7 mil em auxílios. Dados de 2024 da Pnad Contínua mostram que 90% dos brasileiros ganham menos de R$ 3,5 mil por mês. Não há informações públicas disponíveis no Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul (TJ-MS) sobre a sua situação processual.
O deputado Dagoberto afirmou em nota ao Estadão que, ao ter tomado ciência dos fatos a partir do contato da reportagem, determinou a “imediata exoneração” do servidor comissionado. “Reafirmo meu compromisso com a defesa das mulheres, causa que sempre pautei em minha trajetória parlamentar”, afirmou o deputado.
O parlamentar não respondeu aos questionamentos do Estadão sobre o processo de contratação de Scardini e o monitoramento da situação judicial dos servidores vinculados ao gabinete. Dagoberto se restringiu a dizer que “por se tratar de uma questão de natureza pessoal e alheia às funções desempenhadas no exercício do cargo, não cabe a mim comentar os desdobramentos além das providências já adotadas”. O comissionado também foi procurado por meio do gabinete, mas não respondeu.
Já Raul Ribeiro Batista II foi empossado no cargo em abril deste ano e teve o mandado de prisão expedido em junho. Ele é acusado na Justiça de não ter feito o pagamento da pensão em dezembro de 2024. Desde que assumiu o cargo no gabinete de Josivaldo JP, o salário dele é de R$ 2,1 mil, mais R$ 1,7 mil em auxílio. A ordem de prisão em seu nome prevê dois meses de reclusão e depois determina a sua soltura.
Em nota, o deputado afirmou que não tinha conhecimento sobre o mandado em nome do seu servidor e que efetuou a sua exoneração após ser informado pelo Estadão. O parlamentar também disse que não havia conflito no momento da posse. Batista II não se manifestou ao ser contatado por meio do gabinete.
“A avalição da conformidade para a contratação é procedimento da Câmara dos Deputados. Somente após a avaliação da Seção de Registro e Controle do Departamento de Pessoal da Câmara, onde não foi apontada nenhuma inconformidade, a posse foi realizada”, afirmou Josivaldo JP.
Na avaliação do professor Prando, a forma mais eficiente de coibir casos como esses seria por meio da integração dos sistemas de informação da Câmara com o de outras instituições. Ele avalia que o compartilhamento em tempo real de dados permitiram checar desvios sem a necessidade de esforços adicionais.
“Os elementos fundamentais para uma melhor governança são o mapeamento, a atualização constante dos dados e o compartilhamento”, afirmou.