Conselheiro do CNJ defende fim de salários para juízes aposentados por venda de sentenças; ‘prêmio’
O advogado Ulisses Rabaneda, conselheiro do Conselho Nacional de Justiça – órgão que detém poderes para fiscalizar o Judiciário em todo o país -, defende o fim do pagamento de salários aos magistrados que tenham sido aposentados compulsoriamente por atos de corrupção, venda de sentenças ou qualquer outra falta grave. Para Rabaneda, o pagamento, ‘além de ser uma distorção lógica, revela-se um claro desvio de finalidade’.
“O que deveria ser pena se converte na sensação de prêmio”, adverte o conselheiro em entrevista ao Estadão. “Vitaliciedade não pode ser confundida com imunidade contra sanções por faltas graves.”
A aposentadoria de magistrados nessa condição custa ao Tesouro cerca de R$ 60 milhões por ano, segundo levantamento do Estadão. Até 2024, o CNJ e também tribunais estaduais e federais já haviam decretado a aposentadoria pela via compulsória de 123 juízes, em 15 anos.
A proposta de Rabaneda mexe com um velho tabu da categoria. Parte dos juízes não admite alterações na lei que rege a toga, a Lei Orgânica da Magistratura Nacional (Loman), ou a Lei Complementar 35/79, em vigor desde 1979 (Governo João Figueiredo).
Em seu artigo 42, o texto da Loman prevê ‘punição’ severa ao magistrado sua aposentadoria compulsória – na prática, ele deixa de vez a carreira, mas continua recebendo subsídios proporcionais ao tempo de serviço.
Tal sanção tem sido aplicada cada vez mais a juízes e desembargadores pegos sob acusação de desvios.
“O resultado disso produz um paradoxo: o magistrado condenado por faltas graves é afastado da atividade, mas continua a receber remuneração vitalícia. Em um país que busca credibilidade e moralidade em suas instituições, essa prática é incompatível com os valores atuais”, avalia Rabaneda.
Outras cinco penalidades atingem juízes por condutas que comprometam a imagem da Justiça: advertência, censura, disponibilidade, remoção e demissão.
A aposentadoria compulsória não livra o juiz de um processo criminal que pode levar à sua demissão e à perda definitiva do contracheque. Mas é um procedimento muito arrastado até chegar ao trânsito em julgado.
Ao Estadão, Ulisses Rabaneda critica o que classifica de ‘férias vitalícias remuneradas’. Ele cita um projeto de lei complementar (277/2020) em curso no Congresso que mira a derrubada da aposentadoria compulsória, prevendo a expulsão pela via direta do juiz enquadrado por faltas disciplinares graves.
“Como considerar adequado um sistema que pune um magistrado por atos de corrupção ou venda de sentenças com a determinação de que pare de trabalhar e continue a receber proventos proporcionais até o fim da vida?”, argumenta o conselheiro. “Isso mina a confiança da sociedade no sistema de justiça e compromete a legitimidade do Poder Judiciário.”
Advogado em Cuiabá com 20 anos de carreira, Rabaneda chegou ao CNJ em fevereiro, por indicação do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil.
Graduou-se em Direito em 2004 na Universidade de Cuiabá e, a partir de 2005, começou a advogar. Exerceu o cargo de juiz-membro do TRE de Mato Grosso, foi vice-diretor da Escola Judiciária Eleitoral, vice-presidente e corregedor regional Eleitoral em substituição.
O conselheiro também foi presidente da Comissão de Direito Penal e Processo Penal da OAB em Mato Grosso, diretor da Comissão de Estágio e Exame de Ordem, membro do Tribunal de Defesa de Prerrogativas e da Comissão de Direito Eleitoral, e também diretor-presidente da Escola Superior de Advocacia.
Na OAB Nacional, atuou como conselheiro federal, membro da Comissão Nacional de Garantia do Direito de Defesa, representante Institucional da OAB no Conselho Nacional do Ministério Público.
LEIA A ÍNTEGRA DA ENTREVISTA DE ULISSES RABANEDA AO ESTADÃO
Por que o sr. é contra o pagamento de subsídios a magistrados aposentados compulsoriamente?
A aposentadoria é um benefício previdenciário, destinado a assegurar dignidade ao trabalhador quando, pelo tempo de contribuição ou idade, não pode mais exercer suas funções. Pensá-la como sanção, além de ser uma distorção lógica, revela-se um claro desvio de finalidade. O resultado disso produz um paradoxo: o magistrado condenado por faltas graves é afastado da atividade, mas continua a receber remuneração vitalícia. Em um país que busca credibilidade e moralidade em suas instituições, essa prática é incompatível com os valores atuais. Mas essa alteração não pode vir sozinha! A independência judicial exige que a perda do cargo seja associada a hipóteses legais claras e tipificadas, como ocorre no regime jurídico dos servidores públicos. Cláusulas genéricas, como ‘violação à honra’ ou ‘dignidade do cargo’, que hoje vigoram, não oferecem segurança suficiente. É preciso avançar em direção a um modelo que preserve a independência, mas responsabilize de forma efetiva, sem a incongruência de transformar pena em benefício.
Considera um privilégio para juízes sob suspeita serem ‘punidos’ com a aposentadoria recebendo salários proporcionais ao tempo de serviço?
De garantia passou a ser visto como privilégio. O que deveria ser pena se converte na sensação de prêmio. Como considerar adequado um sistema que pune um magistrado por atos de corrupção ou venda de sentenças com a determinação de que pare de trabalhar e continue a receber proventos proporcionais até o fim da vida? Isso mina a confiança da sociedade no sistema de justiça e compromete a legitimidade do Poder Judiciário.
O sr. pretende propor ao CNJ o fim dos salários para juízes que foram afastados definitivamente da toga por corrupção e outros ilícitos no exercício das funções? Acredita que terá adesão do colegiado?
Para que seja possível mudar a atual realidade, faz-se necessária uma alteração legislativa. Estão em trâmite no Congresso Nacional algumas propostas nesse sentido, mas não avançam. O Conselho Nacional de Justiça já vem determinando, nos julgados que aplicam aposentadoria compulsória, a remessa de cópia dos autos às Procuradorias-Gerais dos Estados ou à Advocacia-Geral da União, e ao Ministério Público, para que proponham as ações cabíveis de perda do cargo. Isso sugere que a própria instituição reconhece a insuficiência da aposentadoria compulsória. Defendo que o Conselho Nacional de Justiça seja investido de poderes para aplicar diretamente a pena de perda do cargo ou demissão, sem que isso represente violação à vitaliciedade, observadas as hipóteses taxativamente definidas em lei. Creio que, diante da nova realidade institucional, há espaço para esse debate.

A Lei Orgânica da Magistratura Nacional (Loman), em vigor desde 1979 (Governo Figueiredo), prevê o pagamento de remuneração proporcional ao tempo de serviço ao juiz aposentado compulsoriamente. A mudança sugerida pelo sr., desde que efetivamente proposta e aprovada, poderá ser questionada perante o STF?
Toda alteração normativa está sujeita a controle de constitucionalidade no Supremo Tribunal Federal. No entanto, a vitaliciedade, prevista na Constituição, garante independência no exercício da jurisdição, mas não pode ser confundida com imunidade contra sanções por faltas graves. Uma vez aprovada a emenda constitucional, a mudança terá plena validade jurídica. Além disso, é importante lembrar que a lei que rege a magistratura nacional (Loman) foi editada em contexto de ditadura. A aposentadoria compulsória, à época, podia até ter algum sentido. Hoje, após mais de 35 anos de estabilidade democrática e institucional, com a solidificação de órgãos de controle como o CNJ, essa previsão está ultrapassada e tem forte rejeição social.
Considera que a interdição dos subsídios já deve ocorrer quando o juiz é preso no início de uma investigação? Por quê?
Não. É necessário distinguir: a prisão cautelar não implica culpa, mas apenas medida processual para assegurar a investigação ou o processo. A perda do cargo e, consequentemente, dos subsídios, deve decorrer de decisão final no âmbito penal ou disciplinar, garantido o devido processo legal. O que se pode admitir, no curso da investigação, são medidas de afastamento preventivo, mas sem suspensão imediata de proventos.
Durante um evento em Cuiabá, no início da semana passada, do qual participou o presidente do STF e do CNJ, ministro Luís Roberto Barroso, o sr. observou que o País atravessa uma ‘nova realidade com a existência do CNJ’. O que o sr. quis dizer com sua mensagem?
A criação do Conselho Nacional de Justiça mudou a lógica da responsabilização disciplinar da magistratura. Hoje existe um órgão nacional, autônomo, com legitimidade democrática e capacidade de rever as decisões locais, assegurando que nenhuma punição decorra de mera discordância quanto ao conteúdo jurisdicional. Esse arranjo institucional garante independência judicial e, ao mesmo tempo, responsabilização efetiva, algo que não ocorria com a mesma segurança quando a Loman foi editada.
O sr. defende que o CNJ seja investido de poderes para demitir juízes nessa situação?
Sim. Essa é uma consequência natural do amadurecimento institucional. A vitaliciedade não deve ser interpretada como obstáculo à responsabilização, mas como garantia contra retaliações. Se um magistrado pratica corrupção, venda de sentenças ou conduta gravíssima, o correto é a perda do cargo, não uma aposentadoria que, na prática, se transforma em “férias vitalícia remunerada”. Entendo ser uma evolução necessária para a credibilidade do Judiciário.
Prevê reações da classe à sua proposta?
É natural que haja reações. A magistratura, como toda categoria, defende suas prerrogativas, e é importante que assim seja. Quando falo de substituir a aposentadoria compulsória por perda do cargo, isso atinge apenas quem pratica desvios, uma pequena minoria —, não o bom magistrado. Este debate deve ocorrer em favor do próprio Judiciário e da sua credibilidade perante a sociedade.
Quanto custam ao Tesouro os juízes aposentados pela via compulsória?
Não tenho esses dados. De todo modo, é importante considerar nessa conta que mesmo os que foram aposentados compulsoriamente recolheram para a Previdência, o que, por certo, deve ser considerado quando se fala em custos individuais para os cofres públicos.
Defende que também os que já estão aposentados fiquem sem receber os proventos?
Não! Creio que o modelo atual está ultrapassado, merecendo revisão. Tudo aquilo que foi feito com base na lei e na Constituição, deve ser preservado, em homenagem ao direito adquirido e ao ato jurídico perfeito. Creio que mudanças se projetam para o futuro.