1º dia de julgamento de Bolsonaro tem defesa da punição a golpismo e estratégias individuais de réus
BRASÍLIA — O primeiro dia do julgamento da trama golpista na Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (STF), nesta terça-feira, 2, foi marcado por falas enfáticas do ministro Alexandre de Moraes e do procurador-geral da República, Paulo Gonet, em defesa de punir ataques à democracia. No flanco oposto, as defesas adotaram estratégias diversas e pouco alinhadas com o objetivo de livrar os réus das eventuais condenações.
A colegiado deu início ao primeiro de cinco dias de julgamento da ação penal 2668, que reúne acusações contra o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e sete membros da cúpula de seu governo (2019-2022) por tentativa de golpe de Estado e outros crimes – o chamado “núcleo crucial”. Só um dos réus, o ex-ministro da Defesa e general Paulo Sérgio Nogueira, compareceu à sessão.

Tanto o ministro-relator, Alexandre de Moraes, como Gonet, que é responsável pela acusação, destacaram que o fortalecimento da democracia brasileira passa por julgar os responsáveis pela tentativa de golpe de Estado. Para o procurador-geral, não reprimir tentativas golpistas beneficia modelos autoritários, tanto no Brasil quanto no exterior.
“O que estão sendo julgados hoje são atos considerados graves, enquanto quisermos manter o Estado Democrático de Direito”, afirmou Gonet.
Relator da ação, Moraes passou recados e resumiu 19 meses de golpismo, entre julho de 2021 e o 8 de janeiro de 2023, em menos de duas horas de leitura de seu relatório. Ele afirmou que a pacificação do País – clamada pelos bolsonaristas por meio da anistia no Congresso – só viria por meio do cumprimento da Constituição.
Moraes defendeu a punição ao golpismo e reagiu à ofensiva do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, que impôs um tarifaço ao Brasil citando uma “caça às bruxas” a Bolsonaro como embasamento. O ministro repeliu a pressão para submeter o STF e o Brasil a um Estado estrangeiro, e indicou que tentativas de coação do Judiciário no curso do processo serão punidas. A fala pode ser lida como um recado a Bolsonaro e seu filho, o deputado federal Eduardo (PL-SP), que são investigados em outra ação por tentativa de interferência no julgamento da ação penal.
“Nestes momentos, a História nos ensina que a impunidade, a omissão e a covardia não são opções para a pacificação, pois o caminho aparentemente mais fácil — e só aparentemente, que é da impunidade — deixa cicatrizes traumáticas na sociedade e corrói a democracia, como lamentavelmente o passado recente no Brasil demonstra”, declarou Moraes.
Durante 2 horas e 50 minutos na parte da manhã, Moraes e Gonet se empenharam para costurar a trama golpista e desfazer a ideia de que a tentativa de ruptura democrática não passou de fatos isolados e “mera cogitação”.
A convocação de militares por Bolsonaro com a intenção de apresentar um plano golpista e tentar convencê-los a embarcar no movimento de ruptura democrática, segundo o procurador-geral, é suficiente para configurar a execução do projeto. E citou, como prova dessa implementação, as reuniões para as quais Bolsonaro convocou os comandantes das três Forças Armadas – Marco Antônio Freire Gomes (Exército), Carlos de Almeida Baptista Júnior (Aeronáutica) e Almir Garnier (Marinha), este o único deles a se tornar réu, por aderir ao chamado golpista, segundo a PGR.
“Não é preciso pensamento intelectual extraordinário para entender que, quando o presidente da República e o ministro da Defesa convocam a cúpula militar para apresentar documento de formalização de golpe de Estado, o processo criminoso já está em curso”, declarou Gonet.
Delação de Cid colocada em xeque
A parte da tarde ficou reservada para a sustentação oral dos advogados de quatro dos oito réus: o colaborador e ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, o tenente-coronel Mauro Cid; o ex-chefe da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) e hoje deputado federal, Alexandre Ramagem (PL-RJ); e o ex-ministro da Justiça Anderson Torres, além de Garnier.
A delação do tenente-coronel Mauro Cid foi um dos principais pontos explorados pelas defesas dos réus durante, e mesmo antes de serem realizadas, as sustentações orais. Momentos antes da retomada do julgamento na parte da tarde, os advogados Paulo Cunha Bueno e Daniel Tesser, que integram a defesa de Bolsonaro, e Demóstenes Torres, advogado de Garnier, criticaram duramente a delação de Cid em conversa com jornalistas.
Chegado o momento da defesa do seu cliente, Torres repetiu, desta vez para que os ministros ouvissem, os argumentos contrários à delação premiada alegando que o colaborador omitiu e alterou informações cruciais para a condução da investigação.
“Os vícios apontados comprometem a credibilidade integral dos relatos (de Mauro Cid). Eu pergunto: é possível convalidar essa delação? Ou ela tem que ser rescindida? Hoje eu vi uma ginástica feita pelo procurador-geral da República para tentar dizer que, se ela for rescindida, os fatos permanecem hígidos (válidos). Para quem? Só se for para a acusação”, afirmou.
O advogado e ex-senador afirmou que o STF terá “inúmeros problemas” caso aceite a proposta da PGR sobre a delação. Gonet apontou que Cid foi omisso e contraditório em alguns pontos, mas defendeu que a delação seja mantida com menos benefícios do que o previamente acordado com o delator.
Antevendo o bombardeio que sofreria dos advogados dos demais réus, a defesa de Cid separou a sua sustentação oral em dois momentos e reservou parte considerável do tempo para argumentar a favor da importância da delação premiada. O advogado Jair Alves Pereira foi escalado para defender a colaboração.
Ele citou, por exemplo, que partiu de Cid a informação de que Bolsonaro reuniu os comandantes das Forças Armadas para apresentar medidas de exceção que poderiam ser aplicadas após a sua derrota nas eleições de 2022. “Ela contribuiu indiscutivelmente para ação penal. O Mauro Cid deu fatos”, afirmou.
A defesa de Cid ainda defendeu, em tom elogioso à investigação conduzida pela PF e a Moraes, que, embora tenha discordâncias com a linha narrativa do processo, não houve coação do seu cliente.
“Nós não concordamos com o pedido de condenação do Gonet. Mas nem por isso posso dizer que ele me coagiu. Nem o ministro Moraes, nem o delegado. Porque aí eu estaria sendo desonesto. Isso não podemos fazer. A lealdade processual tem que ser íntegra. O legítimo direito de questionar. O direito de criar argumentos e provas não idôneas é totalmente diferente”, disse Alves Pereira.
O advogado de Ramagem, Paulo Renato Garcia, tratou dos documentos encontrados nos dispositivos do deputado. O tema é central porque a PGR acusa Ramagem de ter orientado Bolsonaro em uma live realizada no dia 29 de julho, apontada como o “início formal” da tentativa de golpe, com base nesses arquivos.
“Alexandre Ramagem não atuou para orientar o presidente, ele não era um ensaísta de Jair Messias Bolsonaro”, disse o advogado. De acordo com Garcia, os documentos eram apenas um compilado de pensamentos e críticas que já haviam sido feitas por Bolsonaro contra o Supremo e o Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
Garcia também argumentou que a resolução aprovada na Câmara — que blinda um parlamentar em exercício de mandato e protege Ramagem das acusações de dano ao patrimônio público e deterioração de patrimônio tombado, cometidos após sua diplomação como deputado — deveria alcançar também a associação do réu ao crime de organização criminosa, uma vez que a PGR alega que esse grupo ainda estava vigente em 8 de janeiro de 2023.
A defesa de Torres, por sua vez, questionou a tese da PGR de que o ex-ministro prestou assessoramento jurídico a Bolsonaro para viabilizar um golpe de Estado e argumentou que a “minuta do golpe” já circulava na internet antes de ser atribuído ao réu, reforçando que não há relação direta entre o ex-ministro e a elaboração do texto.
Também afirmou que Torres planejou a viagem aos Estados Unidos “muito antes” de os ataques do 8 de Janeiro serem planejados — sua ausência durante o evento é tida como evidência de sua participação —, e que, como secretário de Segurança Pública do Distrito Federal, ele tentou desmobilizar o acampamento em frente ao quartel-general do Exército em Brasília.
A sessão foi encerrada antes das 18h e deve ser retomada nesta quarta-feira, 3, às 9h. Ainda restam as sustentações do ex-ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) e general Augusto Heleno, Bolsonaro e Nogueira. Caso as manifestações dos advogados não terminem até as 12h, o julgamento deve ser retomado na terça-feira que vem, 9 de setembro.