9 de setembro de 2025
Politica

Governador do Tocantins lavou propinas de R$ 6,3 milhões na construção de pousada de luxo, diz PF

A Polícia Federal suspeita que o governador afastado do Tocantins Wanderlei Barbosa (Republicanos), alvo da Operação Fames-19, lavou uma fortuna em propinas na construção de uma requintada pousada na Serra de Taquaruçu, nos arredores de Palmas. Pelo menos R$ 6,3 milhões foram canalizados para as obras do recanto, destaca a PF. O dinheiro teria sido obtido por meio da venda de cestas básicas de “papel” durante a pandemia da covid-19, em 2021.

Na semana passada, quando o ministro Mauro Campbell, corregedor nacional de Justiça, o afastou por seis meses do cargo, o governador disse que a medida foi “precipitada” e que as apurações da Operação Fames-19 “ainda estão em andamento, sem conclusão definitiva”.

Formalmente, a pousada foi registrada em nome do filho do governador, Rérison Antônio de Castro Leite.

Adquiridas via licitações supostamente fraudadas pelo governo do Tocantins, as cestas nunca existiram de fato, logo nunca chegaram às famílias carentes. A fraude pode ter implicado em um prejuízo de R$ 73 milhões aos cofres públicos, segundo estimativas dos investigadores.

O esquema era operado pelo empresário Paulo César Lustosa, segundo a PF. Ele foi casado com Karynne Sotero Campos, hoje mulher do governador. Pelo menos dez deputados estaduais e outros investigados integravam, segundo o inquérito da Fames-19, o grupo envolvido em um “esquema sistemático” de desvio de recursos públicos em contratos firmados com secretarias governamentais e institutos de interesse público.

A PF sustenta que o governador e aliados praticaram crimes de frustração ao caráter competitivo de licitação, peculato, corrupção passiva, lavagem de capitais e formação de organização criminosa –  supostamente perpetrados no âmbito da Secretaria do Trabalho e Desenvolvimento Social do Tocantins (Setas) e em outros setores, “com a ciência e aquiescência” de Wanderlei – no início da trama, Wanderlei ainda ocupava a cadeira de vice-governador.

A suposta lavagem de dinheiro de propinas foi incluída na investigação a partir da descoberta de uma troca de mensagens entre “operadores financeiros do governador, realizando depósito fracionado de dinheiro em espécie em sua conta bancária, em prática qualificada como smurfing, assim como o pagamento de boletos bancários tendo Wanderlei Barbosa Castro como favorecido”.

O smurfing é um expediente comum nos crimes financeiros. O operador fraciona a propina em várias transferências para o destinatário, geralmente um agente público. Essa técnica dificulta o rastreamento dos órgãos de controle.

Segundo a PF, as mensagens resgatadas evidenciaram que o fiscal de contrato de cestas básicas Matheus Macedo Mota e o então chefe de gabinete do governador, Marcos Martins Camilo, “em período contemporâneo aos pagamentos feitos em favor de empresa comprovadamente envolvida nos escândalos de fornecimento fraudulento de cestas básicas, operaram numerário em espécie em grandes somas, realizando pagamentos e depósitos em espécie em favor de Wanderlei”.

Trecho de decisão do ministro Mauro Campbell, do STJ, sobre Wanderlei Barbosa, governador afastado do Tocantins.
Trecho de decisão do ministro Mauro Campbell, do STJ, sobre Wanderlei Barbosa, governador afastado do Tocantins.

‘Altíssimo padrão’

A pista sobre a construção da pousada Pedra Canga foi encontrada pelos investigadores a partir da análise de fotos armazenadas no celular de Wanderlei e em redes sociais abertas do próprio governador e de seus filhos, assim como da arquiteta responsável pela obra.

Segundo a investigação, “foi confirmada a edificação de um empreendimento exclusivo de altíssimo padrão, no meio da serra de Taquaruçu, nas proximidades da cidade de Palmas, em trajetos percorridos por estradas não pavimentadas, o que ratifica a convicção de que grandes somas foram despendidas para sua estruturação, dada a dificuldade de acesso ao local”.

A PF descobriu que com o escopo de justificar o afluxo de capital de Wanderlei para o empreendimento, o balanço financeiro da pousada passou a indicar os aportes como sendo transferências de “Investidor-Anjo” – termo utilizado em direito empresarial para qualificar aquele que despeja recursos em empreendimentos em estruturação, em troca de futura participação societária.

A análise do fluxo financeiro da construção mostra que o governador e seus filhos Rérison Antônio e Yhgor Leonardo Castro Leite destinaram no período compreendido entre 21 de junho de 2022 a 30 de julho de 2024, “o expressivo montante de R$ 2.432.950,42 para as contas do empreendimento”.

“Com a intensificação do esquema após a assunção do cargo de governador do Estado por Wanderlei Barbosa Castro é razoável supor que os R$ 4 milhões a descoberto utilizados na construção da pousada Pedra Canga, cuja edificação é contemporânea aos fatos aqui investigados, decorreram da efetiva movimentação de dinheiro em espécie, recebido a título de vantagem indevida durante todo o período investigado, em uma possível situação de lavagem de capitais”.

A construção continua em andamento, diz a investigação.

A PF destaca que diálogos entre Rérison Antônio Castro Leite e Marcos Martins Camilo, datados de 21 de maio de 2024, revelam a orientação do filho do governador para que tudo ficasse registrado em nome dele. “Rérison orienta Marcos Camilo a deixar todos os apontamentos averbados na Junta Comercial do Tocantins, referentes à pousada Pedra Canga, em seu nome, ratificando o escopo atual e contemporâneo de dissimulação do capital ilicitamente auferido no governo do Estado, para ser empregado em sua edificação”, pontua a PF.    

O Ministério Público Federal considera que esses fatos robustecem a hipótese de que a construção da pousada teria sido o meio empregado “pelo governador para lavar o dinheiro proveniente dos crimes por ele cometidos”.

Uma interceptação telefônica pegou Rérison Antônio e Marcos Martins – o chefe de gabinete de Wanderlei –  tratando da ocultação de patrimônio do governador.

Rérison avisou Marcos. “O capital social é dividido entre eu, Leo e Rosa, inclusive, a pedido dele (Wanderlei), né. (…) Mas até a última vez que eu falei com ele, ele não queria que botasse nada no nome dele, não. Deixasse assim mesmo. Na verdade, lá praticamente tudo é no meu nome, né.”

Ainda segundo a PF, após o registro das informações, “curiosamente”, houve o rápido arquivamento de documentos contábeis e societários na Junta Comercial do Tocantins, com movimentações referentes aos anos de 2022, 2023 e 2024, todas arquivadas em 2025.

A investigação crava “inegáveis indícios de continuidade delitiva por parte do governador”.

A PF já havia feito um primeiro pedido de afastamento do governador depois que, no ano passado, na primeira fase da Operação Fames-19, agentes apreenderam “grande quantidade” de dinheiro no gabinete de Wanderlei.

A descoberta sobre a pousada e os registros na Junta Comercial motivaram a ratificação do pedido de afastamento do chefe do Executivo, “notadamente, em razão dos fortíssimos indícios de lavagem de capitais, uma vez que os recursos ilicitamente auferidos estavam sendo direcionados, ainda que parcialmente, para a construção do empreendimento de alto padrão na Serra de Taquaruçu”.

A averbação de documentos societários de forma urgente, ainda em 2025, com o aparente objetivo de “justificar o aporte de recursos sem justificativa jurídica”, chamou a atenção da PF – “tais atos foram realizados logo após a juntada da informação nestes autos, para manifestação do Ministério Público”.

A PF inclui no inquérito detalhes sobre a construção da pousada em um capítulo denominado “Núcleo Financeiro e de Lavagem de Capitais” – composto por agentes que, “ora atuaram para dissimular o recebimento de vantagens indevidas, ora operaram como destinatários de grandes somas, as quais eram sacadas para serem posteriormente repassadas ao governador e aos demais integrantes da organização”.

“A reforçar a convicção de que parte dos recursos ilicitamente auferidos pelo governador foi canalizada para a pousada Pedra Canga, empreendimento de luxo em construção na Serra de Taquaruçu, formalmente em nome de Rérison Antônio Castro Leite, filho do governador, a autoridade policial juntou aos autos as informações complementares, a fim de ratificar os indícios da atualidade do crime de lavagem de capitais e de formação de organização criminosa por parte do chefe do Poder Executivo Estadual”, anotou o ministro Mauro Campbell, corregedor nacional de Justiça, que autorizou a deflagração da Operação Fames-19, fase 2, na última quarta-feira, 3.

Segundo a PF, os protocolos dos documentos na Junta Comercial ocorreram entre 24 e 27 de fevereiro de 2025, “por volta de cinco dias após a conclusão das diligências que resultaram na Informação de Polícia Judiciária, sendo certo que os balanços de 2022, 2023 e 2024 foram assinados em 2025 pelos sócios na mesma data do protocolo das informações complementares”.

O certificado digital de Allyne de Oliveira Pereira Castro, mulher de Yhgor Leonardo Castro Leite, foi emitido menos de uma hora antes da assinatura feita no balanço da pousada, “a evidenciar a urgência do grupo em justificar e embasar documentalmente o empreendimento em edificação”.

“Todos estes elementos, portanto, reforçaram a percepção de que, de fato, Wanderlei Barbosa não apenas desviou recursos públicos oriundos de contratos de fornecimento de cestas básicas durante o exercício de seu mandato, como também se valeu de empresários, servidores, e assessores próximos, além de familiares, notadamente de seus filhos, para a ocultação e dissimulação do patrimônio ilicitamente auferido, incorrendo, muito provavelmente, não apenas no delito de corrupção passiva e formação de organização criminosa, como também no delito de lavagem de capitais”, assinala a PF.

Para os investigadores, a lavagem de dinheiro ainda segue em execução, em razão de seu caráter permanente, havendo a canalização de recursos em espécie para a construção do empreendimento de luxo na Serra de Taquaruçu.

“Foi constatado o direcionamento de grandes somas de recursos para a construção de uma pousada na Serra de Taquaruçu, denominada ‘Pousada Pedra Canga’, formalmente colocada em nome de Rérison Antônio Castro Leite, mas que contou com o afluxo de grandes somas de dinheiro oriundos de seu pai, o governador Wanderlei Barbosa, entre 21 de junho de 2022 até os dias atuais”, ressalta o ministro corregedor.

PF põe pousada sob suspeita; empreendimento teria sido construído com dinheiro de corrupção, segundo investigadores.
PF põe pousada sob suspeita; empreendimento teria sido construído com dinheiro de corrupção, segundo investigadores.

Despesas pessoais

A PF está convencida de que ficou comprovado “nítido escopo do grupo em mascarar a efetiva destinação dos valores, os quais eram destinados para finalidades diversas que iam de despesas pessoais do governador a investimentos em atividade agropecuárias ou empreendimentos imobiliários colocados em nome de seus filhos”.

“No caso vertente, a decisão da organização criminosa claramente coordenada pelo próprio governador do Estado, Wanderlei Barbosa Castro, de realizar os desvios por meio dos contratos de fornecimento de cestas básicas, seguramente, levou em consideração a dificuldade subsequente de fiscalização do que fora efetivamente prestado para a população”, argumentam os investigadores.

A PF descobriu que integrantes da organização pagavam contas pessoais do governador, por meio da quitação de boletos em casas lotéricas de Palmas. 

A recuperação de diálogos permitiu também a identificação de uma empresa de serviços e referências que teria realizado o repasse de ao menos R$ 500 mil, “em favor do governador”.

‘Taxas de retorno’

Ao decidir afastar o governador por seis meses, o ministro Mauro Campbell acentuou. “O pessoal envolvimento de Wanderlei Barbosa nas contratações, evidenciado pela atuação de seus assessores especiais, agentes imediatamente subordinados a sua pessoa, ou mediante contato direto e imediato com lobistas e demais empresários que, comprovadamente, deram causa ao desvio de recursos públicos, falando expressamente em ‘taxas de retorno’ por parte da chefia do executivo, assim como a atualidade da lavagem de capitais, em franca execução na edificação de uma pousada na Serra de Taquaruçu, neste ano de 2025, reforçaram a convicção desta relatoria de que o afastamento do gestor do cargo de governador é medida que se impõe.”

Campbell se convenceu ainda mais da necessidade de tirar o governador de suas funções, ainda que provisoriamente, quando a PF apresentou complementação à representação inicial, “comprovando a canalização de parte substancial do dinheiro desviado para empreendimento de luxo na serra de Taquaruçu, denominada Pousada Pedra Canga, colocada em nome de seus filhos, em uma clara situação de lavagem de capitais na modalidade dissimulação”.

Laudo pericial da PF no Tocantins indica que “até o atual momento”, as obras do empreendimento foram estimadas em, pelo menos, R$ 6,38 milhões.

Diálogos firmados em 21 de maio de 2024 “foram expressos em comprovar o escopo de dissimulação por parte do grupo investigado”.

Uma mensagem recuperada pelos investigadores entre Marcos Martins e Rérison Antônio destaca. “Ele (Wanderlei) não queria que botasse nada no nome dele não.”

O corregedor Mauro Campbell aponta para a documentação fiscal da pousada, juntada com urgência na Junta Comercial do Tocantins, ainda em 2025, “com o escopo de justificar documentalmente o inexplicável balanço financeiro da edificação”.

“Conforme pontuado pela autoridade policial, estranhamente, após a conclusão das diligências que resultaram na Informação de Polícia Judiciária, finalizada em 22 de fevereiro de 2025 e prontamente comunicada ao Ministério Público, o grupo capitaneado por Wanderlei Barbosa se movimentou para cobrir as  lacunas financeiras do empreendimento, promovendo a formalização de balanços financeiros pretéritos, assinados em 10 de março de 2025, mesma data do protocolo das informações complementares na Central de Processo Eletrônico deste Superior Tribunal de Justiça.”

Ainda segundo a PF, o balanço de 2022 foi assinado por Allyne Castro, mulher de Yhgor Castro Leite no dia 10 de março de 2025, às 16h23, “mediante certificado digital adquirido no mesmo dia, poucas horas antes, a comprovar uma estranha urgência na justificação contábil do empreendimento”.

“A contemporaneidade dos delitos de formação de organização criminosa e de lavagem de capitais é manifesta, inserindo-se em um contexto de sucessivas e reiteradas menções aos delitos de corrupção passiva, seja na modalidade solicitação, seja na modalidade recebimento, o que despertou a atenção desta relatoria, tendo em vista que, de ordinário, tais delitos são praticados de maneira velada, sendo abundantes os indícios colhidos de sua efetiva consumação”, pontua Campbell. 

Wanderlei Barbosa foi afastado do cargo.
Wanderlei Barbosa foi afastado do cargo.

‘Nada republicanos’

Segundo o ministro, “para além dos indícios da prática de corrupção passiva na modalidade solicitação, os diálogos nada republicanos se inseriram, no panorama probatório, dentro de um contexto mais amplo que evidenciou a continuidade de um esquema delitivo há muito capitaneado por Wanderlei Barbosa, seja como vice-governador do Estado do Tocantins, seja como mandatário máximo do Poder Executivo”.

Campbell observa que “a expressiva monta de recursos em espécie sacados e destinados a Wanderlei Barbosa era manejada por Marcos Martins Camilo, chefe de gabinete do governador, que se incumbia de realizar o pagamento de despesas pessoais, de depositar valores em conta, e de realizar a quitação de boletos tendo o governador como beneficiado”.

Balanço maquiado

“No caso em apreço, malgrado o fiscal de contrato de fornecimento de cestas básicas, Matheus Macedo Mota, tivesse uma renda formal de apenas R$ 3.427,13, verifica-se do teor das conversas e dos comprovantes de depósitos em espécie realizados, que ambos movimentavam grandes somas de dinheiro físico, fracionados em depósitos de pequeno valor, por ordem e determinação de Wanderlei Barbosa”, segue o ministro.

Campbell reputa “haver manifesta atualidade e contemporaneidade, não apenas no tocante a estes delitos, como também, no tocante aos delitos de formação de organização criminosa, e sobretudo, de lavagem de capitais na modalidade dissimulação, considerado o teor dos balanços maquiados da pousada Pedra Canga, assinados em 10 de março de 2025, empreendimento de luxo em construção na Serra de Taquaruçu, nas proximidades de Palmas”.

O ministro afirma que “dinheiro auferido de desvios perpetrados no exercício do cargo (de Wanderlei)” foi empregado na construção da pousada. 

COM A PALAVRA, O GOVERNADOR WANDERLEI BARBOSA

Na última quarta, 3, quando a Operação Fames-19, fase 2, foi deflagrada por ordem do ministro Mauro Campbell, o governador Wanderlei Barbosa declarou, em nota, que considera a medida “precipitada”.

“Recebo a decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) com respeito às instituições, mas registro que se trata de medida precipitada, adotada quando as apurações da Operação Fames-19 ainda estão em andamento, sem conclusão definitiva sobre qualquer responsabilidade da minha parte. É importante ressaltar que o pagamento das cestas básicas, objeto da investigação, ocorreu entre 2020 e 2021, ainda na gestão anterior, quando eu exercia o cargo de vice-governador e não era ordenador de despesa.

Reforço que, por minha determinação, a Procuradoria-Geral do Estado (PGE) e a Controladoria-Geral do Estado (CGE) instauraram auditoria sobre os contratos mencionados e encaminharam integralmente as informações às autoridades competentes.

Além dessa providência já em curso, acionarei os meios jurídicos necessários para reassumir o cargo de Governador do Tocantins, comprovar a legalidade dos meus atos e enfrentar essa injustiça, assegurando a estabilidade do Estado e a continuidade dos serviços à população.”

COM A PALAVRA, OUTROS CITADOS

A reportagem busca contato com os investigados. O espaço está aberto para manifestação (rayssa.motta@estadao.comfausto.macedo@estadao.com)

 

 

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