11 de setembro de 2025
Politica

Punir e reinserir: a democracia funciona assim

William Waack me lançou, ao fim do programa WW na CNN Brasil, na última quinta-feira, 4, uma provocação certeira: se o Brasil foi capaz de punir elites políticas desviantes, também foi capaz de reinseri-las no jogo. Essa constatação, diz ele, sustenta o argumento de quem defende anistia a Jair Bolsonaro e aos já condenados do 8 de janeiro: se corrupção no passado não inviabilizou o retorno de atores políticos, por que não perdoar quem atentou contra a ordem democrática?

Minha resposta parte de uma distinção simples, porém decisiva: reintegração via Estado de Direito não é anistia. Democracias constitucionais combinam dois imperativos: (1) punir desvios — inclusive quando praticados por atores poderosos — e (2) reintegrar quando as próprias regras assim determinam (após cumprimento de pena, revisão judicial, prescrição, absolvição). Punir e reinserir, longe de serem antônimos, compõem o mesmo desenho institucional.

Anistiar crimes contra a democracia não é reconciliação, é abrir caminho para novas ameaças e tentativas de rupturas
Anistiar crimes contra a democracia não é reconciliação, é abrir caminho para novas ameaças e tentativas de rupturas

Idas e vindas não são exceção; são a regra. Nem nos Estados Unidos o processo é linear. O Macarthismo foi uma fase de regressão; o afastamento de Nixon no Watergate foi uma correção institucional; Trump representa novo estresse às regras do jogo — que se espera sejam seguidas por outra fase de correção. Democracias avançam por ciclos de idas e vindas, e o essencial é a tendência de longo prazo: se as instituições conseguem reagir, corrigir excessos e reafirmar limites.

O Brasil pós-1988 é “ímpar”, menos por ausência de contradições e mais por sua disposição institucional de lidar com elas sob regras. O julgamento da Ação Penal 470 (mensalão) foi um marco: pela primeira vez, a mais alta Corte condenou lideranças partidárias enquanto o partido seguia no poder — um sinal claro de custo para o desvio. Ao mesmo tempo, a face complementar do constitucionalismo é a revisão. Quando o STF anulou as condenações de Lula em 2021 por questões de competência e de devido processo legal, não foi perdão, por mais que ele e os petistas pensem que tenha sido; foi decisão jurisdicional com efeitos políticos, tomada nos termos da lei. Isso é o que distingue Estado de Direito de voluntarismo punitivo.

Daí o ponto central para o debate atual. Anistia não é sinônimo de reintegração: é ato político de perdão coletivo quando interessa às partes. É excepcional, previsto na Constituição e historicamente parcimonioso porque altera incentivos futuros, reduzindo por decreto o custo esperado da transgressão.

Há ainda uma dúvida relevante: seria constitucional anistiar crimes que atentam contra cláusulas pétreas? Se a própria Constituição proíbe emendas tendentes a aboli-las, como admitir que uma lei ordinária perdoe quem tentou fazê-lo? A resposta é negativa. Anistia não pode ser usada como expediente para legitimar ataques a fundamentos que a Carta classifica como inegociáveis.

Em 2021, o Brasil tipificou os crimes contra o Estado Democrático de Direito (revogando a antiga LSN), como abolição violenta da ordem constitucional e golpe de Estado. Não é semântica; é dizer que atacar as regras do jogo é um crime que atinge o coração do regime.

A resposta institucional ao 8/1 veio: centenas de condenações já foram proferidas. Bolsonaro e seus auxiliares estão sendo julgados. Não se trata de “vingança”, mas da aplicação da lei a quem organizou, financiou ou executou atos para subverter o resultado eleitoral. A mensagem é inequívoca: contesta-se nas urnas e nos tribunais — não pela violência.

Centenas de condenações já foram proferidas, uma resposta institucional ao golpe de 8 de janeiro de 2023
Centenas de condenações já foram proferidas, uma resposta institucional ao golpe de 8 de janeiro de 2023

A força da democracia está em permitir duas vias de controle que não são infalíveis: vertical e horizontal. Na primeira, eleitores punem e premiam nas urnas. É uma via falível porque há assimetria de informação, atenção limitada e desigualdade de recursos entre candidatos. Eleitores podem não perceber o desvio — ou preferir corruptos que entregam bens visíveis.

Na segunda, existem freios e contrapesos entre instituições: Judiciário, Ministério Público, tribunais de contas, Polícia Federal. Também é falível, pois excessos de coordenação podem violar garantias e comprometer punições duradouras — pense-se na Lava Jato; e autoproteção política pode tentar esvaziar controles, como por exemplo em mudanças que tentam afrouxar a Lei da Ficha Limpa.

Instituições são sempre imperfeitas porque nascem de disputas e contextos específicos — e depois operam sob condições distintas. O que importa é se aprendem, corrigem rumos e preservam os incentivos adequados. Três testes ajudam a avaliar qualquer “reintegração”: 1) Justificativa: há base jurídica clara (cumprimento de pena, nulidade reconhecida, absolvição) ou é perdão amplo por conveniência? Reintegração legítima decorre de regra; anistia é exceção raríssima. 2) Incentivos: a medida aumenta ou reduz o custo esperado da conduta que desejamos desincentivar? Anistiar crimes recém-tipificados contra a democracia barateia futuras tentativas. 3) Tendência: de 1988 para cá, os mecanismos de defesa ficaram mais robustos ou mais frágeis? O julgamento do Mensalão, A Lava-Jato e a responsabilização do 8/1 — com gradação de culpabilidade — indica robustez.

Nossa trajetória, entretanto, é não linear. Houve excessos e insuficiências; decisões reformadas; erros e correções. Mas a linha de tendência importa: tipificamos crimes contra a democracia, mostramos que é possível punir poderosos em tempo político real e preservamos portas de retorno pela via jurídica. Isso não é impunidade; é institucionalidade.

A melhor resposta à pergunta do Waack é: sim, punimos — e às vezes reintegramos — porque essa é a gramática da democracia constitucional. O que não podemos é transformar essa gramática em atalho político para apagar crimes que visaram derrubá-la. Anistia ampla a Bolsonaro, aos que junto com ele tentaram fragilizar a democracia e aos condenados do 8/1 não é magnanimidade; é mau incentivo — e amanhã cobrará um preço maior da própria democracia. Anistiar crimes contra a democracia não é reconciliação; é abrir caminho para novas ameaças e tentativas de rupturas.

 

 

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