O silêncio que corrompe
Em recente editorial, o Estadão criticou com profundidade o resultado de uma pesquisa alarmante para a liberdade de pensamento no Brasil: de acordo com o Instituto Sivis, aproximadamente metade dos estudantes brasileiros declararam se autocensurar nos debates universitários. Alunos com um posicionamento mais ao centro político ultrapassam essa margem, enquanto pessoas de esquerda e direita alegam se autocensurar um pouco menos. Trata-se de dados condizentes com um regime autoritário, onde perseguições costumam ocorrer com frequências em espaços como esses.
As origens desse processo corrosivo do pensamento acadêmico tiveram como pano de fundo um grande movimento autodeclarado de libertação nacional, libertação do ser e justiça social. Segundo o filósofo Roger Scruton, em seu livro “Tolos, fraudes e militantes”, o conceito de libertação “não significa simples liberdade em relação” a um determinado grupo político, mas uma “emancipação” das chamadas instituições burguesas. No que diz respeito à luta por justiça social, Scruton argumenta que em nome de uma ideia de igualdade, ela “se torna uma demanda mal disfarçada pela “limpeza total” da história que os revolucionários sempre tentaram”.
Para o antropólogo brasileiro Antonio Risério, o mundo pós-1968 da contracultura criou uma série de mecanismos autoritários de caráter “estético-psicossocial”, que buscavam um “reconhecimento” em espaços culturais abandonados pela força da tradição. Universidades, escolas, espaços musicais, entre outros lugares, receberam um público cada vez mais engajado em seu projeto de emancipação pelas vias socioculturais. Tudo isso ganhou muita força com os dezesseis anos de FHC e Lula no poder (1995-2010).
Embora, à primeira vista, esse fenômeno autoritário possa ter implicações menores no seio da sociedade, a verdade é que tal processo vem culminando na formação de profissionais que normalizam a (auto) censura em suas vidas e profissões. Prova disso encontra-se no aumento de decisões monocráticas por parte do Supremo Tribunal Federal (STF), na hierarquização identitárias de pautas por parte da opinião pública, além da formação de uma “história única” acerca dos fatos, conforme já analisamos em artigo anterior para essa coluna, intitulado “A corrupção dos conceitos”.
Somada a atuação patrimonialista de uma direita e um centro político, que desde o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, vêm aumentando seu poder de barganha através do aumento dos valores das emendas parlamentares, o Estado Democrático de Direito vem sofrendo um esgarçamento de seu potencial junto à sociedade brasileira.
Em nome de cancelamentos e aproveitamentos, a sociedade brasileira abandona sua capacidade de conviver com doutrinas abrangentes razoáveis, levando em consideração a ideia de sua obra “Liberalismo Político”, promovida pelo filósofo John Rawls. De acordo com o intelectual norte-americano, “as pessoas razoáveis percebem que os limites da capacidade de juízo colocam restrições àquilo que pode razoavelmente ser justificado a outros e, por isso, subscrevem alguma forma de liberdade de consciência e a liberdade de pensamento”. Portanto, ao abandonar tal perspectiva, a esfera pública brasileira se reduz a uma série de pensamentos e instituições verticalizados, tendenciosos e rotineiramente colocados em suspeição por parte de seu povo.
Delibera-se um Estado disfuncional, onde o Executivo tenta minimamente governar com uma explosão de Medidas Provisórias, o Legislativo aparelha uma mesa diretora da Câmara, em nome de uma pressão que excede a razoabilidade da negociação, e um Poder Judiciário clientelista e antidemocrático, que favorece demasiadamente seus aliados, enquanto inventa uma nova interpretação da lei para seus inimigos. A Justiça no Brasil, além de deixar de ser cega, vem cada vez mais se utilizando de olhares biônicos para executar, legislar e judicializar ao mesmo tempo.
Subjaz desses movimentos que se colocam como opositores de uma boa República, um processo mais profundo de formação de um quadro acadêmico e intelectual que anseia por justiçamentos e não por justiça. Sendo assim, voltamos à inquietação inicial desse texto, que constata o grau violento com que os futuros juízes, políticos, professores, jornalistas etc., estão sendo (mal) formados no Brasil. Tudo isso favorece o fomento de diferentes tipos de corrupção, pois sem a base da discordância, do direito ao contraditório e da anulação da dialética como desenvolvimento do saber, as autocracias acabam por construir verdades e fatos que inibem a possibilidade do levante crítico.
O panorama traçado evidencia que a autocensura e a uniformização do pensamento não são meros fenômenos isolados, mas reflexos de uma engrenagem social, política e cultural que corrói a liberdade intelectual e compromete a própria essência da democracia. Sem espaços de debate genuíno, o Brasil arrisca-se a formar cidadãos e instituições condicionados a aceitar verdades pré-fabricadas, enquanto a crítica e a pluralidade de ideias se tornam cada vez mais restritas.
Este texto reflete única e exclusivamente a opinião do(a) autor(a) e não representa a visão do Instituto Não Aceito Corrupção (Inac). Esta série é uma parceria entre o Blog do Fausto Macedo e o Instituto Não Aceito Corrupção. Os artigos têm publicação periódica.
 
