‘PEC da Impunidade’: regime jurídico de irresponsabilidade e satisfação de interesses partidários
A Câmara dos Deputados, em Brasília-DF, acabou de aprovar, em dois turnos de votação, a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 3/2021, apresentada e defendida com a pretensão de “restaurar” a dignidade e a garantia das imunidades parlamentares, supostamente vilipendiadas por decisões do Supremo Tribunal Federal (STF).
Em resumo, tal matéria busca modificar a Constituição Federal, prevendo que, a responsabilização criminal de parlamentares perante ao STF só será possível “após autorização da respectiva Casa Legislativa”, o que acaba por criar, escandalosamente, um verdadeiro controle político prévio do Congresso Nacional sobre a necessária persecução penal por parte do Estado.
A proposta é polêmica por um sem-número de razões. A primeira delas é a quantidade de deputados e de senadores no Brasil alvos de processos perante ao STF, por força de variados crimes, muitos deles, inclusive, ligados a práticas corruptivas. A justificativa, portanto, de que a PEC protege prerrogativas parlamentares ou que serve para conter eventual abuso ou perseguição judicial cai por terra.
Segundo, e não menos importante: o texto não resolve a incansável batalha entre os poderes instituídos no Brasil – leia-se Legislativo, Executivo e Judiciário. Ao contrário: tem o condão de aumentar a tensão institucional que, não de hoje, coloca em risco a estabilidade democrática.
Mas, afinal, e aqui é o que mais importa: referida proposta é compatível com o texto da Carta Magna? A resposta me parece negativa. Em primeiro plano, é preciso relembrar que a República pressupõe, obrigatoriamente, medidas governativas que visam à efetivação do bem comum, contemplando a proteção do cidadão acima de interesses egoísticos, pessoais e partidários. No Brasil, infelizmente, a dominação dos espaços de poder por “senhores feudais”, que lutam para garantir a própria sobrevivência política, a qualquer custo, é contínua.
A PEC protocolada sob a justificativa de proteção das imunidades, na verdade, ao meu juízo, defende a impunidade. Ao se condicionar à responsabilização criminal de deputados e de senadores à autorização da Casa Legislativa, registre-se, pela prática de qualquer crime (a proposta não faz a mínima distinção neste tocante), mesmo aqueles de corrupção, o que se busca é a garantia da impenitência.
A inconstitucionalidade da PEC em tela é vislumbrada pelas seguintes razões:
- condicionar a instauração de processo criminal à autorização da Casa legislativa viola a cláusula da separação de poderes (artigos 2º e 60, inciso 4, parágrafo 3, da Constituição Federal), já que retira do Poder Judiciário a apreciação sobre a construção da formação de culpa;
- viola o princípio da legalidade, na medida em que transforma uma análise que deveria ser exclusivamente jurídica (a constatação ou não de crime para o recebimento de denúncia e instauração da ação penal) em apreciação política, permitindo que o Parlamento se blinde, por maioria, da responsabilização criminal que deve ser aplicada a todos;
- representa flagrante violação ao supraprincípioconstitucional da indisponibilidade do interesse público, além de violar a moralidade administrativa, já que permite, por razões exclusivamente políticas, que o Congresso Nacional proteja parlamentares de imputação, o que claramente contraria o interesse público;
- mantida a possibilidade de votação de forma sigilosa, há nítida violação ao princípio da transparência, previsto no artigo 37 da Constituição Federal, sendo inadmissível que o Legislativo não possa ser acompanhado por seus eleitores no processo de tomada de decisão para fins de controle político posterior.
Uma eventual tentativa de conciliação e de retomada do equilíbrio entre os poderes – o que é válido e necessário – não pode servir como desculpa para se criar no Brasil um regime jurídico de irresponsabilidade, de impunidade ou de satisfação de interesses individuais.
Espera-se que o controle parlamentar no Senado seja eficiente e rejeite a PEC em questão, sob pena de uma nova crise institucional, afinal, uma vez provocado, o STF, dentro de suas prerrogativas inquestionáveis, poderá declarar a inconstitucionalidade da medida.