A crise na República: uma roda gigante sem lados
Mais uma vez, passamos por uma extrema polarização política, desta vez com contornos e influências estrangeiras. De um lado, busca-se uma suposta “independência” econômica, por meio da aproximação com determinados grupos de países, com o objetivo de retirar o poder do dólar. De outro, os Estados Unidos utilizam parte de sua força para manter sua moeda como a mais importante do mundo.
Em verdade, esses embates são apenas reflexos das provocações de direita e esquerda, agora com forte influência do Poder Judiciário. Aliás, as falhas no sistema de separação dos Poderes fazem com que o mecanismo de checks and balances seja acionado de forma quase automática, mesmo quando não há falha estrutural no sistema, mas apenas disputas de lados.
Um exemplo foi a “Vaza Jato”, na qual vieram à tona mensagens entre autoridades que influenciaram julgamentos, resultando na anulação da Operação Lava Jato, ainda que houvesse delações confessadas pelos próprios réus. Agora, surge mais um capítulo: documentos vazados sobre determinações entre julgador e equipe de gabinete, com ordens para incriminar a qualquer custo. Trata-se, em verdade, de situação semelhante à da “Vaza Jato”, mas com uma diferença crucial: a ausência do duplo grau de jurisdição, já que se trata de competência originária em último grau.
Assim, a crise permanece, em tempos distintos, atropelando conceitos jurídicos que deveriam ser observados e criando instabilidade no País. Essa instabilidade, porém, tem raízes históricas e particularidades próprias, como já havia apontado Hannah Arendt em seu livro Crises of the Republic (1971), ao analisar os Papéis do Pentágono.
Ao citar a Guerra do Vietnã, Arendt afirmou que a mentira sempre existiu na política, mas que o século XX inaugurou um uso sistemático e burocratizado da mentira, transformando-a em política de Estado. Ela distingue a mentira tradicional — pontual e estratégica — da mentira moderna, planejada, institucionalizada e produzida por comissões e relatórios oficiais, criando uma realidade paralela.
As consequências são devastadoras: destrói-se a confiança pública e o espaço comum da política, pois a verdade factual é substituída por versões manipuladas. Na atualidade, vemos reflexos disso nas fake news e na manipulação midiática.
Outro ponto importante do livro dialoga com nossa “roda gigante” política, que gira a cada quatro anos em meio à crise institucional. Arendt analisou os movimentos sociais nos EUA — direitos civis, protestos contra a Guerra do Vietnã, movimentos estudantis — e formulou a questão: quando a desobediência civil é legítima em uma democracia?
Para ela, não se trata de crime comum, mas de um ato coletivo, público e político, que visa chamar atenção para as falhas do sistema. A desobediência civil surge quando os canais institucionais deixam de representar os cidadãos. É preciso diferenciar o dissidente individual (de cunho moral e consciente) do movimento organizado, que busca transformação política.
Arendt advertiu que tratar a desobediência civil apenas como crime mina a legitimidade democrática, pois ela funciona, em verdade, como um “termômetro da democracia”. Na época, ainda não havia redes sociais, mas hoje essas plataformas potencializam a mobilização, criando grupos expressivos de opinião, alguns dos quais buscam a violência como saída para os problemas estruturais.
Sobre a violência, Arendt sustentou que se trata de instrumento material e coercitivo, capaz de destruir, mas incapaz de criar poder legítimo. Pode até ser eficaz no curto prazo, mas nunca gera poder duradouro, pois não funda consensos.
Ao final de sua reflexão, Arendt conclui que a democracia entra em crise quando: (i) a mentira destrói a confiança; (ii) a violência substitui o diálogo e mina a legitimidade; e (iii) a falha de representação leva à desobediência civil como reação legítima. Para ela, tais crises não são meras falhas conjunturais, mas revelam fragilidades estruturais da República moderna.
Portanto, diante de tudo o que a autora expôs em 1971, podemos pensar que nossa roda gigante política — ora de um lado, ora de outro — talvez encontre, em algum momento, a pacificação. Em suas críticas, Arendt ressaltou que o maior perigo não é a violência em si, mas a erosão da verdade factual, pois sem ela não há espaço público compartilhado. Também destacou que a desobediência civil deve ser vista como um direito democrático implícito, expressão da vitalidade da cidadania.
Por fim, Arendt reforçou que somente o poder político autêntico nasce da ação coletiva e do diálogo, nunca da imposição violenta. As crises, inevitáveis à vida republicana, podem ser momentos de renovação, desde que enfrentadas com abertura democrática.
O artigo representa, em linhas gerais, que 1971 reflete 2025, que os anos passam, mas as ideias ainda permanecem na busca incessante do Poder, mas sempre se esquecem de que a roda gigante gira, um dia a cadeira na esquerda, outra na direita, subindo e descendo.
Este texto reflete única e exclusivamente a opinião do(a) autor(a) e não representa a visão do Instituto Não Aceito Corrupção (Inac). Esta série é uma parceria entre o Blog do Fausto Macedo e o Instituto Não Aceito Corrupção. Os artigos têm publicação periódica.