Esquisitice rimada
O poeta Raimundo Correia tinha fobia das alturas. Não suportava olhar para baixo se estivesse no segundo andar. Tinha a sensação de encarar um precipício e se esquivava, temeroso.
Exatamente no segundo andar da rua da Candelária, no Rio, morava seu amigo Filinto de Almeida e era em casa dele que Raimundo se hospedava quando vinha à capital, nos intervalos de sua vida de magistrado em Vassouras.
Ao instalar o amigo no seu melhor quarto, Filinto disse: – “Estás aqui muito bem. De cá de cima, nem sequer suspeitamos que isto seja a ignóbil rua da Candelária”. E sabendo da vertigem das alturas, insistia: – “Vem ver aqui da varanda o panorama da baía. É estupendo. Não há outro igual!”.
Raimundo se recusava:
– “Obrigado. Aqui estou bem. Não quero perder a ilusão da beira-mar, ao constatar que estou longe dela…”
Mas Filinto não desistia:
– “Mas vem ao menos olhar a baía…”
E Raimundo, no meio da sala, esticando o pescoço:
– “Estou vendo perfeitamente!”.
Ainda sugeriu a Filinto:
– “Uma boa ideia: você pode fazer uma fortuna, alugando esta varanda aos suicidas. Isto é um precipício!”.
O dono da casa era alguém bastante pragmático:
– “O negócio quebraria. Só se suicida quem não tem dinheiro…”
As esquisitices de Raimundo o faziam brigar com amigos íntimos, como Filinto de Almeida. Ficou sem falar com quem o recebia em casa, como verdadeiro familiar.
Ao trazer para o Rio, para a distribuição, o seu livro “Versos e Versões”, Raimundo foi à rua do Ouvidor, visitar Valentim Magalhães. Viu ali Filinto de Almeida sentado à mesa de trabalho e não o cumprimentou.
Quando voltou do encontro com Valentim, passa novamente pela mesa de Filinto e deixa um livro, em cuja folha de rosto escrevera: “Ao Filinto, o Raimundo”. Mas sem uma palavra. Foi preciso que Valentim Magalhães fizesse uma reconciliação, que foi bem-sucedida.
Mas Raimundo, famoso pelo soneto “As Pombas”, com quelas conquistara a glória, mas também o infortúnio. A glória, porque é um dos mais belos sonetos escritos em língua portuguesa. Infortúnio, porque geraram a pecha de plagiário. A ideia central do poema fora surrupiada segundo alguns a Metastásio e a Teófilo Gautier, segundo outros. Raimundo sofria com essa alusão.
Seja como for, “As Pombas” ganharam extrema popularidade. Onde quer que fosse, era apresentado como “Raimundo Correia, autor de “As Pombas”. Era uma constante abordagem e as pombas não o deixavam. Insistiam, constantes, teimosas, persistentes. Para ele, parecia que o acompanhavam ruflando as asas, sacudindo as penas, arrulhando… Na verdade, um inferno.
Os companheiros da poesia o perturbavam ainda mais. Uma tarde, Afrânio Peixoto agrava a aflição do aflito, com a notícia – que fez questão de transmitir pessoalmente – de que no sertão baiano, corria uma velha quadra popular que era, sem tirar nem pôr, o resumo perfeito do soneto.
– “Mas isso é possível?”, espantou-se Raimundo Correia.
E Afrânio recitou:
“No coração moram sonhos,
Como as pombas nos pombais…
Mas as pombas vão e vêm,
Eles vão, não voltam mais”.
Era evidente que a ideia do soneto estava nesses versos. Perfeita, íntegra, transparente. Raimundo Correia desolado, balbuciando:
– “É estranho! Mas eu nunca ouvi tal quadra!”.
Mas Afrânio, sorrindo, abraçou Raimundo num abraço afetuoso e confessou que fora ele quem resumira o soneto, na graça popular daquela redondilha. Não só ele, como também Medeiros e Albuquerque se dera à façanha: “As pombas partem; mas voltam/voltam, de tarde, aos pombais. As ilusões, quando soltam/ seu vôo, não voltam mais”.
Por sinal que Medeiros não se limitou ao soneto “As Pombas”. Também sintetizou outra obra-prima de Raimundo Correia: “Mal Secreto”: “De muita gente que existe/E que julgamos ditosa/Toda a ventura consiste/ Em parecer venturosa”.
Gente esquisita, mas talentosa, essa que escreve poesia…