Carta Brandi: Há 70 anos, documento mirando Goulart tumultuou eleição e causou intriga internacional
A menos de vinte dias da eleição presidencial de 1955, veio a público uma carta implicando João Goulart, candidato a vice-presidente pelo PTB, em uma trama de tráfico de armas, com a mobilização de “brigadas de choque operárias”, para a implementação de uma “república sindicalista” no Brasil. O documento ficou conhecido como Carta Brandi, em referência ao deputado argentino Antonio Brandi, que a assinava.
A autenticidade do texto foi contestada, e um inquérito foi instaurado para apurar a origem do documento. O chefe da investigação chegou a presumi-lo verdadeiro, mas mudou de opinião e concluiu que o escrito era falso. O episódio causou intriga internacional e tumultuou o pleito, mas não comprometeu a campanha de Goulart, eleito vice na chapa de Juscelino Kubitschek, do PSD.

Em 16 de setembro de 1955, a Carta Brandi foi lida em cadeia de rádio e televisão por Carlos Lacerda, deputado federal da UDN e principal opositor do trabalhismo entre os anos 1940 e 1960. No dia seguinte, um fac-símile do documento (precursor do xerox) foi reproduzido por Tribuna da Imprensa, jornal que pertencia a Lacerda. “Eis a prova da traição de Jango”, anunciou a publicação.
A carta é datada de agosto de 1953, época que Goulart era ministro do Trabalho de Getúlio Vargas, e assinada por Antonio Brandi, deputado da província argentina de Corrientes. Na correspondência, o parlamentar afirmou ter recebido uma mensagem de Jango transmitida por Iris Valls, prefeito de Uruguaiana, cidade gaúcha na fronteira com Corrientes.
O deputado dizia ter sido informado por Ángel Borlenghi, ministro do Interior da Argentina, sobre “brigadas de choque operárias”. Segundo Brandi, o membro do gabinete de Juan Péron acreditava ser válido “aproveitar”, no Brasil, “a experiência obtida na luta sindical argentina”. Nesse sentido, o vice-governador de Corrientes, Clementino Forte, colocava-se à disposição “para dirigir todas as atividades de coordenação sindical” entre os dois países.
O documento ainda aludia a um esquema de tráfico de armas. Brandi relatou ter comprado a “mercadoria solicitada” por Jango na Fábrica Militar de Córdoba. A remessa chegaria ao País via Uruguaiana, “disfarçada de produtos alimentícios”.
Na mensagem, Brandi referiu-se a um comerciante argentino chamado Ignácio Pinedo como seu emissário. Segundo o relato, Pinedo seria o responsável por transmitir a carta a Jango no Rio de Janeiro, onde estaria sob o pretexto de uma viagem de negócios. As comunicações futuras entre o deputado e João Goulart, por sua vez, seriam intermediadas por um advogado de iniciais “F.A.”.
Lacerda obteve a carta em julho de 1955. Ao recebê-la, segundo relatou, foi aconselhado por aliados a checar a autenticidade do documento. Na apuração, constatou que um argentino chamado Ignácio Pinedo, de fato, esteve no Rio de Janeiro em agosto de 1953, o que o fez presumir que a carta era verdadeira.
Por outro lado, aliados de Jango contestaram o documento. O candidato a vice negou a veracidade do texto e chamou o caso de “chantagem” dos adversários. A pedido do Congresso, o Ministério da Guerra abriu um inquérito policial-militar (IPM) para apurar se o documento era autêntico, nomeando o general Emílio Maurell como chefe das diligências. Em paralelo ao IPM, jornalistas se interessaram em investigar o caso. Enquanto Lacerda buscava ratificar o documento que divulgou, jornais identificados com Jango pretendiam desmenti-lo.
Lacerda e uma comitiva de Tribuna da Imprensa viajaram a Buenos Aires, onde se encontraram com Ignácio Pinedo, o suposto emissário do documento. O comerciante confirmou conhecer Jango, mas negou ser o portador da carta. Ao saber que Antonio Brandi negou conhecê-lo, mostrou a Lacerda sua certidão de casamento, em que o deputado foi uma das testemunhas. Ao ver a firma, Lacerda garantiu se tratar do mesmo traçado usado na carta.
À esquerda, destacaram-se as apurações de Última Hora, do Rio, e A Hora, de Porto Alegre. Em 30 de setembro, o imigrante argentino Fernando Malfussi, que atuava como poceiro e mecânico, foi apontado pela imprensa como suspeito de falsificar a carta. O chefe do IPM, por outro lado, desmentiu as reportagens. “Não recebi quaisquer provas da falsidade da carta atribuída ao deputado Antonio Brandi. Não passa de pura fantasia o noticiário a respeito”, disse Maurell naquele mesmo dia ao jornal O Globo, quando estava prestes a embarcar a Buenos Aires, onde prosseguiria com as diligências do caso.
Dois dias depois, Maurell encontrou-se com o chefe da polícia da capital argentina. O comissário deu ao general um estudo caligráfico segundo o qual a assinatura da carta “quase certamente” era autêntica. Maurell telegrafou a informação ao ministro da Guerra, o general Henrique Teixeira Lott, que a anunciou em cadeia nacional de rádio em 3 de outubro, data da eleição presidencial.
Nos dias seguintes, houve uma guinada no IPM. Após um laudo assinado pelo perito Antônio Carlos Villanova, considerado um dos pioneiros da criminalística brasileira, o general despistou a autenticidade da assinatura de Brandi. Fernando Malfussi foi preso e, em depoimento, confessou a fraude, implicando um amigo na empreitada, o imigrante argentino Alberto Mestre Cordeiro.
Nas conclusões do IPM, Emílio Maurell atribuiu a fraude à “precaríssima situação financeira” de Malfussi e Cordero. Os argentinos eram sócios de um “invento” para a perfuração de poços. Segundo o general, no início de 1955, Malfussi apresentou-se à Aeronáutica para prestar informações sobre o tráfico de armas na fronteira entre Argentina e Brasil. A partir de então, tornou-se informante do serviço secreto da Força. Durante o primeiro semestre, por intermédio dos militares, encontrou-se com Carlos Lacerda, com quem buscou apoio para patentear o perfurador de poços. Lacerda prometeu ajudá-lo, questionando-o sobre provas do contrabando de armas em Uruguaiana. Por intermédio de Malfussi, Cordero também se aproximou de Lacerda.
Os boatos sobre contrabando de armas na fronteira com a Argentina não eram novidade. Lacerda ventilou os rumores durante o ano de 1955 e, há pelo menos dois anos, implicava Goulart em uma conspiração para instauração de uma “república sindicalista” no Brasil, aos moldes do regime de Juan Perón no país vizinho.
Para Maurell, a “insistente, notória e ávida” campanha contra Jango e o peronismo motivou a fabricação da Carta Brandi. O general narra que, após um revés no mercado de ações, Malfussi e Cordero estavam em penúria, vislumbrando uma solução “salvadora”: “Falsificar um documento capaz de provocar grande repercussão nos meios políticos e jornalísticos, (…) além de renovar a confiança (de ambos) junto a certas pessoas influentes, tudo com vistas à obtenção de vantagens futuras”.
Ainda de acordo com o general, Malfussi dedicou-se à falsificação da assinatura de Brandi, e Cordero, à redação do texto, concebido por ambos. O conteúdo da carta é uma mistura de personagens e tramas que circulavam em Uruguaiana durante os anos 1950, como o prefeito Iris Valls, o comerciante Ignácio Pinedo e os peronistas Clementino Forte, Ángel Borlenghi e Antonio Brandi. Embora argentinos, os políticos eram conhecidos por toda a região da fronteira.
Já o advogado de iniciais “F.A.” era Fortunato Azulay, do Rio de Janeiro. Segundo o inquérito, o defensor foi dragado à trama por deter provas de um estelionato praticado por Mestre Cordero. Após Lacerda receber a Carta Brandi, foi o próprio Cordero que soprou ao jornalista que “F.A.” era Fortunato Azulay, sugerindo uma operação de busca e apreensão no escritório do defensor. A proposta foi negada pelo chefe da polícia do Rio, o comissário Menezes Côrtes.
Indiciados, Malfussi e Mestre Cordero foram processados pela Justiça Federal e condenados em julho de 1956 pelo crime de falsificação. Cordero foi condenado a três anos de prisão e Malfussi, a dois anos e dois meses de reclusão.
Aos 83 anos, Lúcio Malfussi é um funcionário público aposentado e cria gado em uma fazenda de Uruguaiana. Filho de Fernando, tinha 13 anos durante o episódio da Carta Brandi. O caso abalou profundamente a família. Fernando foi libertado em 1958, mas não conseguiu se estabelecer novamente em Uruguaiana. Voltou à Argentina, afastando-se da família, a qual via somente em visitas esparsas. Morreu aos 62 anos, em 26 de abril de 1968, em Coronel Bogado, no Paraguai.
Décadas depois, Lúcio engajou-se em desvelar o processo contra o pai, o qual, diz, foi injusto. “Não tenho dúvida que a carta era verdadeira”, afirma ao Estadão o pecuarista. Em 2014, Lúcio ingressou com um pedido de anistia ao pai no Ministério dos Direitos Humanos. Três anos depois, valendo-se da pesquisa que apresentou no pedido, publicou um livro sobre o caso.

Para o filho de Malfussi, o inquérito falhou ao não periciar o original da carta. Segundo Lúcio, isso afetou a análise sobre a grafia da letra “B” de Brandi, apontada pela perícia como principal inconsistência da assinatura.
O inquérito também concluiu que o contrabando de armas relatado pelo documento era “inverossímil”. Lúcio contesta a alegação. O criador de gado argumenta que, dias antes da data indicada na Carta, o prefeito Iris Valls, apontado como receptador da “mercadoria”, pediu licença à Câmara Municipal para deixar o País. “É muita coincidência”, afirma.
Por fim, queixa-se do tratamento conferido ao pai no curso do processo, e alega que o poceiro confessou a fraude sob tortura. Ao indiciar Malfussi, Emílio Maurell descreveu-o como “um homem de inteligência primária e de poucos escrúpulos”, além de outros adjetivos que, à luz das garantias processuais atuais, são de uso, no mínimo, descabido.
Nos anos seguintes, a Carta Brandi passou a ser usada como provocação a Lacerda, sendo citada sempre que se pretendia descredibilizar uma denúncia do deputado. O udenista conformou-se com a conclusão do inquérito, embora alegasse supostas pontas soltas na investigação. Em 1971, em seu Depoimento, deu uma explicação inusitada sobre o episódio. “Eu próprio, que me lembre, nunca jurei pela autenticidade da carta. Eu jurava pela autenticidade do fato e a carta fazia supor que era verdadeira porque confirmava o fato”, disse o ex-deputado federal.
Em favor da família Malfussi, pesa o benefício da dúvida. Em 1990, o Senado criou uma comissão para analisar documentos da Casa que estavam sob sigilo. Entre os arquivos, estavam os autos do IPM da Carta Brandi. O senador que analisou a papelada registrou em seu relatório a impossibilidade de avaliar as conclusões do inquérito, em razão do tempo transcorrido desde o fim da investigação.
“Como presidente da comissão encarregada de examinar os documentos, deixo claro que não endosso as acusações do referido IPM, nem as conclusões a que chegou o general Maurell Júnior. Transcrevo-as pelo absoluto respeito ao fato histórico restrito, no entanto, aos dados que me chegaram às mãos pelo material disponível”, afirmou o senador Nabor Júnior (PMDB-AC). “O inquérito foi levado a efeito há quase quarenta anos, sem grandes possibilidades de se reconstituírem os meandros pelos quais passou, razão suficientemente impeditiva de uma avaliação objetiva de seu desempenho”, completou o parlamentar.
Três episódios da história política brasileira registram paralelos com a Carta Brandi. Em 1921, o marechal Hermes da Fonseca foi chamado de “sargentão sem compostura” em uma carta atribuída a Artur Bernardes, candidato à Presidência. O episódio inflamou uma reação dos hermistas, mas não comprometeu a eleição do mineiro. Além disso, comprovou-se que o escrito era falso.
Em 1937, o Plano Cohen serviu como pretexto para a deflagração de um autogolpe de Getúlio Vargas, instaurando o Estado Novo. O documento indicava supostas ações da Internacional Comunista para a tomada do poder no Brasil, mas era uma peça ficcional, redigida como treinamento da Ação Integralista Brasileira.
Quase sete décadas depois da Carta Brandi, um argentino voltaria a incendiar uma eleição brasileira com informações infundadas — desta vez, não mais em formato analógico. Em novembro de 2022, após a vitória de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) contra Jair Bolsonaro (PL), o marqueteiro Fernando Cerimedo propagou em live informações falsas sobre o sistema eletrônico de votação do Brasil. Segundo as investigações da Polícia Federal (PF), o conteúdo foi usado para estimular militares a aderirem a um intento golpista. Cerimedo foi indiciado pela PF, mas não foi denunciado pela Procuradoria-Geral da República (PGR).