23 de setembro de 2025
Politica

O luto não pode obscurecer a racionalidade

O recente homicídio que vitimou o ex-Delegado-Geral da Polícia Civil de São Paulo, Ruy Ferraz Fontes, além afetar a todos que privamos de seu convívio e testemunhamos a excelência de seu trabalho como policial, acendeu um alerta e colocou na ordem do dia o debate sobre se autoridades envolvidas no combate ao crime organizado devem ter direito automático à proteção pessoal do Estado. Embora a seja compreensível a forma emotiva como se discute o tema, é necessário evitar que se ignorem critérios técnicos, legais e operacionais.

Não há dúvida de que o enfrentamento às organizações criminosas implica riscos reais e por vezes duradouros. Autoridades que se colocam na linha de frente contra o crime organizado — seja por meio da investigação, da repressão direta ou da condução estratégica de políticas públicas — muitas vezes tornam-se alvos de ameaças. No entanto, o simples fato de alguém ter ocupado uma função de destaque na área da segurança pública não implica, por si só, que esse indivíduo se tornou alvo permanente ou imediato de grupos criminosos.

A designação automática de seguranças pessoais com base apenas no histórico funcional pode parecer, à primeira vista, uma medida preventiva responsável. No entanto, é preciso que se perquira, sempre, a efetiva necessidade da proteção. O princípio da razoabilidade deve ser observado com rigor: não se trata de negar segurança a quem realmente a precisa, mas de evitar distorções no uso dos recursos públicos, especialmente no contexto de escassez desses recursos.

É sabido que a segurança pública em todo o país opera com efetivos limitados, orçamentos apertados e demandas crescentes. Em muitos estados, faltam policiais nas ruas, delegacias funcionam com equipes reduzidas, e o policiamento ostensivo sofre com a baixa capacidade de resposta. Dentro desse cenário, a destinação automática de agentes para a segurança pessoal de ex-ocupantes de cargos públicos — especialmente sem avaliação concreta de risco — configura uma má alocação de recursos humanos e materiais.

Além disso, a proteção pessoal não pode ser compreendida como um benefício vitalício ou como uma extensão automática do cargo anteriormente exercido. A legislação brasileira não estabelece que todo ex-secretário de segurança, ex-delegado geral, ex-promotor ou ex-magistrado envolvido com o combate ao crime deva receber escolta permanente após deixar o cargo. A lógica da administração pública deve ser a da necessidade comprovada, e não a da presunção generalizada.

O caminho mais equilibrado passa pelo exame de caso a caso. Em primeiro lugar, é essencial que haja solicitação formal por parte da autoridade que se sente ameaçada. Em segundo lugar, a análise da ameaça deve ser feita por órgãos competentes — como as Secretarias de Segurança Pública, os Ministérios Públicos ou os Tribunais Estaduais e Federais — com base em elementos concretos como registros de ameaças, informações da inteligência policial, grau de exposição, contexto regional, entre outros. E, aqui é importante ressaltar que o dever do Estado de fornecer segurança pessoal a quem dela necessita, não exige que o destinatário dessa proteção esteja ainda exercendo a atividade estatal, ou mesmo não se tenha aposentado. É indiferente para a concessão da proteção algo diferente da efetiva necessidade.

Não se deve fomentar a ideia equivocada de que ocupar certos cargos gera automaticamente direito a escolta pública, mesmo anos depois de deixar a função. Isso fragiliza a legitimidade da política de segurança e fere o princípio da igualdade no acesso aos recursos do Estado.

É preciso lembrar que o combate ao crime organizado exige estratégia, inteligência e uso racional dos meios disponíveis. Oferecer proteção pessoal a quem não precisa desvia recursos de quem de fato precisa: cidadãos expostos à violência cotidiana, policiais em operações de risco, vítimas de violência doméstica com medidas protetivas em vigor, entre outros.

A morte de Ruy Ferraz Fontes é trágica, e sua história na segurança pública merece reconhecimento. Mas o luto não pode obscurecer a racionalidade. É compreensível que, diante de um episódio brutal como esse, surjam pressões por respostas rápidas, inclusive institucionais. No entanto, políticas públicas duradouras não devem nascer do calor do momento. Generalizações emocionais, embora bem-intencionadas, podem levar a decisões pouco eficazes e insustentáveis.

Cada caso deve ser analisado individualmente. A designação de escoltas e seguranças deve ser pautada por critérios técnicos, sob pena de transformar um instrumento legítimo de proteção em um privilégio injustificado. A proteção do Estado não pode ser distribuída com base em cargos passados, mas sim com base em riscos efetivos. A ideia de que todo ex-agente envolvido no combate ao crime seja automaticamente, um alvo, carece de base empírica e compromete a gestão responsável dos recursos públicos.

Por fim, é importante lembrar que o enfrentamento ao crime organizado não se faz apenas com escoltas e carros blindados. Faz-se com investimento em inteligência, integração entre instituições, fortalecimento das polícias e valorização dos servidores públicos. A proteção de quem combate o crime começa, antes de tudo, com políticas públicas eficientes — e não com medidas automáticas, pouco criteriosas e potencialmente ineficazes.

 

 

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