24 de setembro de 2025
Politica

Quando o mal se torna banal: refletindo com Arendt o Brasil atual

Em 1961, na cidade de Jerusalém, em Israel, ocorreu o julgamento do oficial nazista Adolf Eichmann, acusado de ser um dos principais responsáveis logísticos pelas deportações de milhões de judeus para campos de extermínio. Na ocasião, Hannah Arendt (1906-1975), filósofa alemã de origem judaica e influente teórica política, cobriu o julgamento e se surpreendeu ao analisar a vida, comportamento e ações do réu.

Ao contrário do que se esperava, Eichmann não era um monstro ou uma figura demoníaca. Era um homem comum, marido, pai e funcionário exemplar. Exímio cumpridor de ordens, embora limitado cognitivamente. Não imbuía ódio pelos judeus nem por qualquer outra pessoa. Apenas cumpria fielmente as determinações de seus superiores hierárquicos.

Na visão de Arendt, Eichmann agia como um funcionário burocrata, que atendia quase que automaticamente as prescrições que recebia, sem, contudo, refletir sobre suas ações. Na verdade, seguia-as piamente por considerá-las legais ou por terem sido emanadas de Hitler, cujas palavras, segundo ele, eram a própria lei.

O fato, porém, é que Eichmann autorizou o transporte de milhares de judeus para campos de concentração, sabendo que dali jamais sairiam. Mesmo assim, acreditava não ter tirado a vida de qualquer judeu, pois apenas ajudou e instigou a realização de crimes – o que, em sua concepção, não era a mesma coisa.

Eichmann acompanhou o extermínio de milhões de judeus, sem refletir que suas mãos, ao assinar documentos que autorizavam o envio dessas pessoas aos campos, estavam tão manchadas de sangue quanto às daqueles que empunhavam armas para fuzilá-los, levá-los às câmaras de gás ou submetê-los a trabalhos forçados. Executava seu trabalho com entusiasmo, sempre em busca de ascensão na carreira militar, enxergando suas atividades como meros atos administrativos. É nesse ponto que Hannah Arendt afirma: o mal se tornou banal.

A partir do momento em que o ser humano perde a capacidade de pensar, refletir e criticar o que acontece ao seu redor e em suas próprias ações, torna-se apenas uma peça de uma engrenagem, útil tanto ao bem quanto ao mal. Nessas condições, o indivíduo torna-se facilmente manipulável por aqueles que detém o poder. Eichmann, por exemplo, foi um elo importante na cruel engrenagem nazista; sua atuação contribuiu para a morte de milhares de pessoas, que talvez pudessem ter sido poupadas. O mal estava diante de seus olhos, mas não houve aversão, repugnância ou culpa. Pelo contrário, sofrimento, desespero e morte tornaram-se comuns. A banalidade do mal se fez presente.

Diariamente, os noticiários expõem casos de violência extrema, corrupção sistêmica, fraudes financeiras e diversos crimes, tanto no Brasil quanto no mundo. Em muitos deles, o pensamento acrítico pode ter levado indivíduos a atos imorais ou até criminosos, nem sempre desejados de forma consciente.

Ao observar a sociedade atual e a formação das novas gerações, acende-se um alerta. Com o desenvolvimento das inteligências artificiais e o uso intensivo das redes sociais por usuários cada vez mais passivos e acríticos, nota-se que, gradualmente, a capacidade de discernimento e reflexão individual têm se deteriorado. A inteligência artificial é uma ferramenta extremamente útil e relevante quando bem utilizada. O problema surge quando se lê nos noticiários frases como “os estudantes voltaram de férias e a inteligência artificial também”, ao fazer referência ao crescente uso da tecnologia para fraudar ou burlar avaliações – prática popularmente conhecida como “colar”.

A grande questão que se impõe é: que tipo de sociedade está sendo construída? Haverá espaço, no futuro, para o pensamento verdadeiramente autônomo? Mais do que isso, noções de certo ou errado, bem e mal, valores morais resistirão ou sucumbirão diante do desfazimento do intelecto?

O Brasil tem acompanhado as investigações que envolvem o Instituto Nacional do Seguridade Social (INSS), no qual foi evidenciado um esquema de fraude bilionário que prejudicou milhares de aposentados e pensionistas com descontos ilegais em seus benefícios. Funcionários de associações, servidores públicos, políticos – pessoas de diferentes cargos e classes sociais – estão entre os envolvidos. Será que, em algum momento, consideraram que esses descontos poderiam tirar o pão da mesa de um aposentado? Que poderiam faltar recursos para pagar uma conta essencial ou adquirir um remédio? Ou mesmo que tais práticas poderiam comprometer a própria vida dessas vítimas? Possivelmente, não. Focaram tão somente na riqueza ilícita, movidos por interesses egoístas e pela busca do prazer próprio.

Outro fato que causou grande repercussão foi a denúncia de graves violações contra crianças e adolescentes, que vêm sendo explorados e sexualizados por adultos em conteúdos divulgados nas redes sociais. O mais perturbador é que, em muitos casos, os próprios pais são os produtores desse tipo de conteúdo ou autorizam a participação de seus filhos. Quem deveria ter o papel de proteção virou algoz. Tudo para e pelo dinheiro. Não se analisam as consequências psicológicas, emocionais ou físicas que tais práticas podem provocar; importa apenas a monetização que podem alcançar. A incapacidade de refletir criticamente e de se colocar no lugar do outro resulta em tragédias. Com o avanço das tecnologias, o mal se intensifica e tende a se expandir de modo exponencial.

Hannah Arendt provavelmente concordaria que a banalidade do mal se expandiu muito além dos campos de concentração nazistas. Atualmente, ela se reveste em práticas cotidianas motivadas pela ausência de consciência crítica, empatia e valores morais. Pelo que se depreende, se histórias com “h” – aquelas que carregam a dor, a memória e o aprendizado – não forem contadas, ouvidas e verdadeiramente compreendidas, o mal não somente se tornará banal, como poderá, perigosamente, tornar-se desejável.

Este texto reflete única e exclusivamente a opinião do(a) autor(a) e não representa a visão do Instituto Não Aceito Corrupção (Inac). Esta série é uma parceria entre o Blog do Fausto Macedo e o Instituto Não Aceito Corrupção. Os artigos têm publicação periódica.

 

 

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