27 de setembro de 2025
Politica

Juiz que condenou Beira-Mar e prendeu 100 traficantes na fronteira diz que está ‘jurado de morte’

O juiz federal aposentado Odilon de Oliveira, que condenou, mandou prender e confiscou bens e ativos de mais de 100 traficantes e gigantes do contrabando na fronteira receia ter o mesmo fim do ex-delegado-geral da Polícia Civil de São Paulo, Ruy Ferraz Fontes, fuzilado sumariamente há doze dias na cidade de Praia Grande, litoral paulista. “Raramente saio de casa”, ele diz. “Eu estou na lista do crime organizado, estou jurado de morte, uma morte anunciada.”

Aos 76 anos, pernambucano de Exu, terceiro de oito filhos de um casal de lavradores, Odilon se notabilizou como juiz federal em Campo Grande, carreira que exerceu durante trinta anos, de 1987 a outubro de 2017.

A passagem para a inatividade o fez perder uma robusta escolta de agentes federais que o acompanhavam dia e noite, inclusive em suas caminhadas nos parques arborizados da cidade e até na academia.

Antes de vestir a toga, ele foi promotor de justiça, juiz estadual e procurador federal, em Mato Grosso do Sul.

Odilon reside em Campo Grande. Em sua casa sente-se como em uma ‘prisão domiciliar’, por assim dizer, cercada de telas eletrificadas e outras defesas para afugentar intrusos. Dali procura sair muito pouco para ‘evitar’ surpresas.

Enquanto atuou como magistrado ele contava com segurança especial. Agora, por mais que clame proteção, não é atendido, protesta.

Ignorado, segundo afirma, busca na própria Justiça que representou a reparação. “Existem quilos de documentos provando uma situação de risco de vingança, inclusive depoimentos de policiais federais colhidos recentemente na ação que ajuizei contra a União”, relata ao Estadão.

Odilon de Oliveira, hoje com 76 anos, é juiz aposentado da Justiça Federal em Mato Grosso do Sul.
Odilon de Oliveira, hoje com 76 anos, é juiz aposentado da Justiça Federal em Mato Grosso do Sul.

A rotina de apreensões não lhe permite exposições, exceto em alguma situação excepcional. “Nesse cenário não ocorreu vingança porque não saio de casa, salvo para urgências. Quando saio, sequer ando com celular para evitar ser rastreado.”

“Condenei muitos criminosos, muitas centenas, durante 30 anos como juiz federal”, contabiliza. “Centenas e centenas de imóveis, urbanos e rurais, confiscados, além de incontável quantidade de veículos e outros ativos bloqueados.”

A Fernandinho Beira-Mar, o poderoso chefão do Comando Vermelho – ora confinado em penitenciária federal de segurança máxima -, Odilon impôs pesado revés, uma condenação de 10 anos de prisão e um confisco equivalente a R$ 25 milhões. Em outro processo, o alvo da caneta de Odilon foi a mulher e um filho do traficante. “Adotei várias providências.”

Nesse tempo especulava-se que a cabeça do algoz do crime organizado valia US$ 1 milhão. Odilon passou a residir em seu próprio gabinete no fórum federal, dormindo em um colchonete, sempre vigiado muito de perto por federais preparados para rechaçar qualquer ofensiva de seus desafetos.

Lista de autoridades juradas de morte pelo crime organizado (esq.); depoimento sobre ameaças ao juiz (dir.).
Lista de autoridades juradas de morte pelo crime organizado (esq.); depoimento sobre ameaças ao juiz (dir.).

Durante os últimos 12 anos de magistratura atuou em vara especializada em crimes financeiros e lavagem de dinheiro, julgando também crimes relacionados, como tráfico transnacional de entorpecentes e o contrabando, atividades pujantes do crime organizado na fronteira com o Paraguai e a Bolívia.

Tem ciência de que ameaças são próprias da atividade, ‘para intimidar e tentar direcionar o trabalho do juiz’. Para ele, ‘na inatividade, não ocorre ameaça’.

“O que há é projeção, para o futuro, dos efeitos das ameaças e planos de morte ocorridos na ativa, vindo a se concretizar através de vingança. É como ocorreu com o delegado Ruy.”

“Sempre acompanhei o trabalho dele (Ruy). Foi um herói no combate ao crime organizado. Quem o matou foi o PCC, por vingança. Não tenho a menor dúvida. A estrutura empregada não foi apenas para assassinar o delegado, pois não era preciso tudo aquilo. Foi para enfrentar o Estado.”

Sua experiência o autoriza a concluir que a brutal execução do ex-chefe da Polícia de São Paulo, emboscado ao anoitecer, foi um recado ao estilo mafioso. “Foi um claro recado do PCC ao Estado-repressor: ‘se nos atrapalhar e não morrer na atividade, poderá ser morto quando se aposentar’.”

Para Odilon a vingança contra o delegado Ruy ‘teve também essa finalidade’. Ele destaca que já em 2008, Ruy Ferraz apareceu em uma lista de autoridades juradas de morte pelo PCC. “Logo que tomei conhecimento do assassinato dele, fui conferir a lista e vi o nome do Ruy. Eu também estou nessa lista, que recebi em 2009, através da Polícia Rodoviária Federal.”

“O que muito me estranha é o delegado Ruy ter sido abandonado na cova dos leões, sabendo-se que, aposentado, era uma vítima em potencial do PCC e não andava com escolta.”

Ameaças levaram à transferência de Odilon quando ele era juiz.
Ameaças levaram à transferência de Odilon quando ele era juiz.

Odilon aponta para um outro nome importante na caçada a facções do crime, o promotor de Justiça Lincoln Gakiya, do Ministério Público de São Paulo. Desde sempre a vida do promotor Gakiya é fustigar o PCC. Isso o faz andar colado a uma escolta espetacular. Agentes armados até os dentes o mantém sob severa blindagem. Até quando?

“A mesma coisa poderá acontecer com outros delegados e promotores que vêm enfrentando, com rara coragem, a criminalidade organizada”, prevê Odilon. “O promotor Lincoln Gakiya é um exemplo. Quando se aposentar, como não mais irá produzir, será abandonado”, deduz.

O magistrado anota que, em relação a ele próprio, já ‘existem dezenas e dezenas de registros oficiais, não só relacionados ao PCC, mas ao crime organizado em geral’.

Apesar das cautelas que adota no seu dia a dia, sente que o crime o espreita em seus próprios domínios. “Uma noite alguém conseguiu entrar na minha casa, seus movimentos foram flagrados por câmeras de vídeo, talvez estivesse preparando uma emboscada para me pegar dentro de minha casa. Teve acesso a talão de cheque, cartões, dinheiro, e não levou nada”, relata Odilon que, na ocasião, se trancou com a esposa no quarto enquanto o estranho vasculhava a sala em penumbra.

O ritmo que, na prática, remete o magistrado a um regime nos moldes de sua ‘prisão domiciliar’, repete-se nos sábados, domingos e feriados.

Ele se reporta a uma ‘enorme quantidade de registros’ protocolados no Conselho Nacional de Justiça (CNJ), incluindo um pedido de sua remoção, ainda em 2008, para outro Estado. Submeteu a demanda ao Tribunal Regional Federal da 3.ª Região, com jurisdição em São Paulo e Mato Grosso do Sul.

Nessa época acumulava pilhas de ações contra o crime e ameaças se sucediam – foram pelo menos 20 anos nessa tensão.

“Eu aleguei altíssimo risco tanto para mim como para os servidores da Justiça Federal e para os próprios policiais da minha escolta.”

Pouco antes de dar adeus à toga, consultou o Conselho Nacional de Justiça se ainda teria direito à proteção. Em 2018 ingressou na vida política, tentou se eleger governador de Mato Grosso do Sul, chegou ao segundo turno e, em março de 2019, perdeu de vez a companhia do efetivo de anjos da guarda.

Diz que não se sente confortável cercado de homens empunhando fuzis e pistolas. “Você fica enclausurado”. Mas considera que precisa deles, ainda mais nesse tempo em que as facções se alastram e desafiam o Estado.

Anda desarmado, afirma. “Não gosto de armas de fogo.” Afinal, sua arma de trabalho sempre foi a pena. E os códigos.

Pela segunda vez, observa, tramita no CNJ pedido de providências de sua autoria aguardando julgamento, com parecer favorável do Departamento Nacional de Polícia Judicial (DNPJ).

Seu pleito é por uma guarda pessoal três vezes por semana, com duração máxima individual de seis horas. Não mais que isso, afirma.

Em 2018, diz, o CNJ, ‘induzido em erro’ pela Polícia Federal, indeferiu pedido seu apresentado ainda em 2014. “Fundamentaram que inexistia ameaça atual. Ora, ameaça só existe na atividade. Sustentaram que eu, em campanha para governador, estava criando ocasião para risco. Em 2018, a segurança da Polícia Federal, quando eu viajava para determinadas cidades do interior do Estado, era reforçada no destino, por policiais militares. Não havia risco.”

Em 2019, logo após perder a companhia armada, com o apoio da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), ajuizou ação contra a União para obrigá-la a conceder a ele a tão almejada segurança.

O processo tramita no Tribunal Regional Federal, em São Paulo. “O alvo desse processo é exatamente a decisão indeferitória do CNJ, de 2018.”

Do outro lado da trincheira

Atualmente, diz, recebe subsídio pouco superior a R$ 20 mil como magistrado aposentado. Avalia que é uma boa remuneração para os padrões do País, mas que não lhe permite bancar uma escolta do próprio bolso.

Aplica-se ao Escritório Adriano Magno & Odilon de Oliveira, do qual é sócio. Com restrições. “Raramente vou ao escritório. Em minha residência, existe uma ‘filial’ oficialmente montada para mim. Hoje, tudo é feito online, sobretudo audiências. Reuniões com clientes são por vídeo.”

Habitualmente, levanta-se às 5 da manhã e se entrega a uma sequência de exercícios – corre, faz esteira e musculação. “Montei estúdio dentro de casa, desde que me aposentei, para não frequentar academia.”

Após os cuidados com a saúde, mergulha nos processos em que atua, agora do outro lado da trincheira. Entre seus clientes estão acusados por tráfico e crimes financeiros, de quem assumiu a defesa. Ele afirma que está no pleno exercício legal da advocacia, sem conflito de interesse.

 

 

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