Fachin assume STF pregando colegialidade e contenção, mas Corte segue dividida e concentrando poder
O novo presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Edson Fachin, assumiu prometendo contenção, menos decisões individuais e mais colegialidade. Na prática, porém, o tribunal segue em outra direção: inquéritos sobre emendas parlamentares sob a relatoria de Flávio Dino e o julgamento do ex-presidente Jair Bolsonaro na Primeira Turma, conduzido por Alexandre de Moraes, revelam um Supremo que já não atua como um colegiado, mas fragmentado em múltiplas arenas decisórias.
Juristas ouvidos pelo Estadão apontam que a fragmentação e a concentração de poder em diferentes arenas resultam na erosão da colegialidade e permitem que cada ministro adote estratégias próprias capazes de alterar resultados já formados. O efeito, apontam, é a percepção de que não existe mais um único Supremo, mas “18 Supremos”: os 11 gabinetes, o Plenário físico, o Plenário virtual, as duas Turmas – cada uma também com seu plenário virtual – e o Núcleo de Solução Consensual de Conflitos (Nusol).
Parlamentares, por sua vez, questionam os poderes concentrados nas mãos dos ministros e o que veem como ingerência da Corte na arena política.

O professor da Universidade Federal do Paraná e da Universidade de Brasília, Miguel Godoy, que cunhou o termo “18 Supremos”, avalia que o modelo atual representa um desvio do desenho previsto pela Constituição de 1988, que instituiu um Supremo único e baseado em decisões colegiadas.
“As decisões deixam de ser do Supremo como Corte e passam a ser de ministros individuais, cada um com sua estratégia e em arenas paralelas”, resume.
Esse movimento, diz, fica claro no modo como determinados temas se concentram em um único gabinete. Nas emendas parlamentares, por exemplo, mais de 60 inquéritos estão sob relatoria de Dino, reunindo em um só ministro a condução de um tema de alta relevância política. Situação semelhante ocorre no julgamento dos atos antidemocráticos de 8 de Janeiro, em que Moraes se tornou figura central: além de relatar mais de mil ações penais contra envolvidos, o ministro conduz 11 inquéritos que deram origem à ação do golpe contra Jair Bolsonaro na Primeira Turma.
O histórico também mostra decisões monocráticas de grande alcance, como em 2014, quando Luiz Fux concedeu sozinho o auxílio-moradia a todo o Judiciário e só revogou a liminar quatro anos depois, sem levar o tema ao plenário
Para Godoy, não se trata de questionar o mérito das apurações, mas de destacar que, quando inquéritos ou processos de grande impacto ficam concentrados em um único ministro, o resultado é a personalização da Justiça, o que enfraquece a autoridade do STF. “Reforça a percepção de que cada ministro é um Supremo”, afirma.
O líder da oposição na Câmara, deputado Zucco (PL-RS), vê o Supremo como uma espécie de “poder político paralelo” e critica a força das decisões individuais dos ministros. Para o parlamentar, não é razoável que um único magistrado derrube, de forma isolada, deliberações tomadas por centenas de parlamentares eleitos. “Esse tipo de distorção gera insegurança jurídica e mina a confiança da população nas instituições”, afirma.
Na mesma linha, o líder do PL, Sóstenes Cavalcante (RJ), sustenta que decisões individuais do Supremo têm interferido diretamente na arena política. “É a substituição da democracia por decisões individuais”, diz.
Levantamento do Estadão com base nos dados do projeto Corte Aberta mostra que, somente neste ano, foram 70.851 decisões individuais no Supremo. O dado dimensiona o peso das monocráticas, mas, para o professor do Insper Luiz Gomes Esteves, a fragmentação também decorre da multiplicação de arenas decisórias.
18 arenas de decisão
Além dos 11 gabinetes, a Corte funciona em diferentes espaços. As duas Turmas, responsáveis por casos penais como o do ex-presidente Bolsonaro, contam com seus próprios plenários virtuais – modalidade em que os votos são inseridos no sistema sem debate entre ministros ou interação com advogados.
Há ainda o Plenário Virtual (PV) da Corte, vinculado ao Plenário físico onde os 11 ministros se reúnem em Brasília. No PV, qualquer ministro pode, por exemplo, apresentar um destaque, mecanismo que leva o processo para julgamento presencial e permite a alteração de votos já lançados. Foi o que ocorreu no caso da chamada “revisão da vida toda”, ação sobre a inclusão de contribuições anteriores a 1994 no cálculo das aposentadorias. Mesmo com maioria formada no PV, um pedido de destaque mudou o rumo do julgamento.

Como mostrou o Estadão, nesse formato os ministros discordam menos, o que tem levado a críticas de advogados e entidades como a OAB. Para Esteves, a multiplicidade de arenas compromete a previsibilidade e gera insegurança jurídica, com impactos sobre cidadãos, empresas e a própria política. “Quando o STF se fragmenta em diferentes arenas decisórias, elas podem produzir decisões conflitantes”, afirma.
Esse é justamente o caso do marco temporal das terras indígenas, hoje sob relatoria do ministro Gilmar Mendes no Nusol. Criado por resolução administrativa e sem previsão na Constituição, o órgão busca costurar acordos por meio de conciliação.
A tese do marco temporal foi considerada inconstitucional pelo plenário do STF em 2023, mas no mesmo ano o Congresso aprovou uma lei que a ressuscitou, alvo de nova ação no Supremo. Relator do caso, Gilmar Mendes levou o tema ao Nusol e criou uma comissão com indígenas, ruralistas e autoridades públicas para tentar um acordo. Para os dois especialistas, a iniciativa ignora a decisão colegiada e mantém viva uma tese já rejeitada pela Corte.
“O modelo brasileiro, de múltiplas arenas e decisões unipessoais, é uma anomalia”, completa Miguel Godoy, ao destacar que o Plenário físico, previsto na Constituição como principal arena deliberativa, tornou-se secundário e menos ativo.
Na avaliação do pesquisador e professor do Insper Diego Werneck, esse quadro pode ser revertido com medidas concretas, como restringir decisões monocráticas, reformar o uso do Plenário Virtual para estimular deliberação real e regular a conciliação dentro de parâmetros claros.
Para Werneck, Fachin tem um “perfil mais discreto” e tende a fomentar decisões colegiadas em meio a um STF cada vez mais fragmentado em múltiplas arenas decisórias.
O próprio Fachin buscou sinalizar nessa direção. Em seu discurso de posse nesta segunda-feira, 29, o ministro afirmou que pretende “realçar a colegialidade” como forma de garantir estabilidade institucional. “O país precisa de previsibilidade nas relações jurídicas e confiança entre os Poderes. O Tribunal tem o dever de garantir a ordem constitucional com equilíbrio”, disse.
O novo presidente do STF também defendeu “contenção” na atuação de cada juiz, em contraste ao protagonismo individual dos ministros.
Como mostrou o Estadão, Fachin procurou individualmente cada ministro para pregar a importância de decisões no plenário. Também sinalizou que pretende definir a pauta de julgamentos de forma coletiva, com a participação de todos.